Sinopse: “O Tigre e o Dragão” é a história de duas mulheres, ambas exímias lutadoras, cujos destinos se tocam em meio Dinastia Ching. Uma tenta se ver livre do constrangimento imposto pela sociedade local, mesmo que isso a obrigue a deixar uma vida aristocrática por outra de crimes e paixão. A outra, em sua cruzada de honra e justiça, apenas descobre as consequências do amor tarde demais. Os destinos de ambas as conduzirão uma violenta e surpreendente jornada, que irá forçá-las a fazer uma escolha que poderá mudar suas vidas.
Direção: Ang Lee
Título Original: 卧虎藏龍 (2000)
Gênero: Fantasia | Aventura | Ação
Duração: 2h
País: Taiwan | Hong Kong | EUA | China
Um Voo Alto
A ideia de revisitar “O Tigre e o Dragão” (2000), que dividiu espaço no Oscar de 2001 com “Gladiador” (2000), não faz parte do projeto de #TBT que a Apostila de Cinema lança nas redes sociais com algumas efemérides relacionadas a grandes festivais e prêmios de cinema. Até porque era difícil imaginar uma obra que usa a fantasia em último grau, com pretensões comerciais, ocupar Cannes, Berlim e Veneza na época. Seu país de produção também tornaria remota a chance de participar da lista final da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e suas coirmãs, do BAFTA ao Globo de Ouro. O que nos motivou foi pensar as quatro grandes indústrias cinematográficas do mundo, em um conteúdo especial para a nossa newsletter nº 27 (enviada gratuitamente todas as semanas a quem se cadastra neste link).
Chinawood é um nome bem menos trabalhado do que Bollywood e Nollywood. Até porque o Ocidente naturalizou, nos últimos vinte anos, as narrativas do audiovisual contemporâneo desta região. Claro que boa parte do processo se deu por interesses econômicos, afinal de contas, para além do conceito de BRICs, Tigres Asiáticos ou qualquer outra forma de enquadrar nações fora do eixo Estados Unidos-Europa como potentes centros econômicos e culturais vê na China um grande destaque. O circuito de prêmios quase sempre se voltou a alguns expoentes deste eixo. Ao longo do tempo, não apenas na migração de profissionais, de Ernst Lubitsch a Alfred Hitchcock, mas também no reconhecimento de lançamento de cineastas como Federico Fellini e Ingmar Bergman. Todos eles possuíam um espaço reservado, mesmo que pequeno e em uma fileira distante, nos encontros competitivos de Hollywood – afinal, eram os grandes a habitar os festivais europeus.
O que se deu no final dos anos 1990 foi diferente. Uma onda de internacionalização que arrefeceu e depois retornou com carga máxima, a ponto de “Parasita” (2019) ser o primeiro longa-metragem não falado em inglês (e, portanto, legendado) a vencer o Oscar de melhor filme. As mostras de cinema mais renomadas entraram de vez no radar da Academia e não apenas para integrar as categorias de produção internacional e, por vezes, roteiro e direção (como ocorreu esse ano com “Druk – Mais uma Rodada“). Mesmo assim, só em 2019 que a produção chinesa foi igualada em indicações, por “Roma” (2018).
Já em 1999 a rivalidade Brasil e Itália do tetracampeonato da Copa do Mundo de futebol se repetiu, com uma inacreditável derrota nossa. Não apenas o ganhador da Berlinale “Central do Brasil” (1998) perdeu a estatueta de filme estrangeiro para “A Vida é Bela” (1997), como viu Roberto Beningni subir o palco uma segunda vez para ser o melhor ator – enquanto Fernanda Montenegro perdeu o de atriz para Gwyneth Paltrow em “Shakespeare Apaixonado” (1998).
Até que Ang Lee foi repatriado para ser o diretor de “O Tigre e o Dragão“, adaptação de um dos cinco livros de uma pentalogia do escritor Du Lu Wang, depois de obras recebidas de forma morna no Ocidente, como a adaptação de “Razão e Sensibilidade” (1995). Adicionando rostos conhecidos no elenco, que aqueles habituados com produções orientais tinham como ícones, o resultado foi de dez indicações ao Oscar e quatro prêmios (filme estrangeiro, trilha sonora original, direção de arte e fotografia). As categorias técnicas denotam o que chamou a atenção do espectador da época, com o voo dos guerreiros em cena. O que foi um artifício das irmãs Wachowski em “Matrix” (1999), aqui virou o aspecto principal das representações.
A revisitação do longa-metragem deu mais peso às cenas que intercalam a ação. Porém, talvez seja reflexo de ser esse um filme muito revisto da sua estreia no cinema até o mercado de DVDs – ou o cansaço de uma maratona de um final de semana marcado por produções fora do eixo pensando a newsletter. Mesmo assim, as três sequências principais ainda impressionam. Uma trama inaugural a partir da entrega da espada do destino verde (e que rendeu uma continuação distribuída pela Netflix), do Mestre Li Mu Bai (Chow Yun-Fat) para Shu Lien (Michelle Yeoh). Ele parece cansado ou frustrado com uma vida que coloca a honra como desculpa para não tolerar a falibilidade.
A malaia Michelle Yeoh já fazia sucesso em Hong Kong, inclusive estrelado uma das obras da série “Police Story“. Após ser alçada ao status de bond girl em “007 – O Amanhã Nunca Morre” (1997) ficou um ano sem trabalhar para treinar seu mandarim para o filme. Até hoje consegue trabalhos em Hollywood, de dublagens da franquia “Kung Fu Panda” à presença nos próximos quatro filmes de “Avatar“. Carreira parecida teve Chow Yun-Fat: de fitas de ação de Hong Kong à passagem pela América com “Anna e o Rei” (1999). Já a jovem Ziyi Zhang (que usou aulas de dança e não de luta para aprender os movimentos) iniciava ali uma década inesquecível. Estrelou dois dos três longas-metragens da trilogia de Zhang Yimou, como trabalhou com Wong Kar-Wai e liderou o elenco de um grande projeto, “Memórias de uma Gueixa” (2005), vencedor de três Oscars.
O mestre Mu Bai vem de uma epifania, onde atingiu com a meditação um lugar em que os preceitos de tempo e espaço foram rompido. E o que ele viu lá não era bom e sim a materialização do vazio (também) enquanto existência. “O Tigre e o Dragão” nos levará para o centro de uma questão envolvendo o sentido da vida, mesmo que todo o exagero da fantasia permita ao público sequer pensar nisso. Até que os embates iniciais, que levarão ao roubo da espade por Jade Fox (Pei-Pei Cheng) ficam marcados em nossa mente pela emblemática cena de perseguição sob os telhados. Mais do que a visualidade, a montagem da sequência e o uso da trilha como elemento intrínseco à luta é um encontro daqueles que mistura o ensinamento sobre cinema enquanto arte audiovisual com a formatação de um sucesso de público.
Ali, a estética do que foi chamada de quinta geração de cineastas chineses já havia se consolidado. A trilogia inicial da carreira de Zhang Yimou é das coisas mais espetaculares do período, começando com “O Sorgo Vermelho” (1987) até o espetacular “Lanternas Vermelhas” (1991). Porém, o impacto de adensar o elemento fantástico, em uma confluência de linguagens, faria o próprio cineasta a desenvolver a outra trilogia (conhecida como wuxia, kung-fu) iniciando com “Herói” (2002) e encerrando com “A Maldição da Flor Dourada” (2006). Esse tipo de narrativa encontrou um filão internacional (o de Lee o primeiro filme em outro idioma a faturar mais de cem milhões de dólares nos EUA) e consolidou o mercado interno, hoje não apenas um dos maiores do mundo mas que voou absoluto nos últimos meses pela forma como a sociedade e o governo local mantiveram a pandemia de covid-19 melhor controlada.
Ang Lee mistura essas possibilidades, mas o faz em blocos distintos aqui. A paixão de Jen (Ziyi Zhang), o “bonito dragão” por Lo (Chen Chang), “o pequeno tigre”; por exemplo, é explorada em um longo flashback – quando já está formatado para o espectador o desejo da mesma de não se submeter ao destino da sociedade patriarcal de vincular o futuro das mulheres ao casamento. Assim como o conflito entre clãs, verbalizado sempre que algum elemento precisa ser exposto para fazer sentido determinada passagem. Ou seja, o filme ainda possui uma formatação, enquanto narrativa, bem tradicional dos anos 1980 e 1990, ao contrário de boa parte dos sucessos da época, que já flertavam com uma abordagem mais moderna. Por isso que, dado, o distanciamento, a obra pode soar um pouco saturada.
Até que a parte final recupera o impacto magnético das lutas. Incluindo uma no topo das árvores de uma floresta, território que Zhang levaria a outro nível em “O Clã das Adagas Voadoras” (2004). Uma pós-produção que praticamente se limitou a retirar a aparência das cordas, já que o elenco realizou boa parte dos movimentos incríveis. “O Tigre e o Dragão” nos conquista não apenas porque as cenas de luta e perseguição impressionam. O longa-metragem nos provoca, enquanto grande dilema, não a relação e o conflito entre pessoas.
Pela interação de Jen, Shu Lien e Mu Bai nos perguntamos sempre onde reside a força: se no ser ou no objeto. A espada do destino não parece disposta a tornar poderoso qualquer um que a embainha. Se faz necessário o encontro dessa força enquanto indivíduo, que reside dentro de cada um. Uma velha narrativa sobre honra, que Ang Lee deu uma roupagem contemporânea dentro da China medieval. Poderia ter dado muito errado – e para ele e para o Cinema deu muito certo.
Veja o Trailer: