Sinopse: Oroslan é uma fábula afável dos artistas responsáveis por Homens que Jogam (Olhar ’18) que se desenvolve em uma comunidade eslovena na Hungria rural em um filme de 16 mm calorosamente texturizado. Começa com a morte do aldeão titular (um trabalhador em um matadouro e bebum convicto, cujo nome significa “Leão”) e prossegue por meio de visitas bem-humoradas a amigos, colegas e entes queridos cujas histórias de leituras de palmas, ataques epilépticos, viagens transportando árvores para Budapeste e outras aventuras lentamente o trazem de volta à vida. Baseado em um conto, o filme documenta um universo ao mesmo tempo que se deleita com os prazeres da ficção.
Direção: Matjaz Ivanisin
Título Original: Oroslan (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 12min
País: Eslovênia | República Tcheca
Gosto de Saudade
Selecionado para o Festival de Locarno, “Oroslan” é o símbolo do recorte que a mostra Novos Olhares do 9º Olhar de Cinema se propôs. Se em “Crônica de Espaço” ventilamos a hipótese da pouca verbalização ser reflexo da torpeza dos atuais discursos da sociedade a partir das transformações da vida de um menino indiano, neste conto imagético de Matjaz Ivanisin somos mergulhados em uma pequena comunidade eslovena, que reflete a morte de um de seus moradores mais ilustres.
O cineasta começa seu passeio pela cadeia produtiva de sobrevivência daquele território, captando imagens vistas com saudades em 16mm. Da colheita à mesa, observa-se uma relação de dependência daquelas pessoas – que o tamanho e a densidade demográfica do espaço nos permite individualizar a ponto de tornar fato incontestável. Todavia, essa correlação existe em qualquer ambiente. É na mesa, mas do bar, que as obrigações se transformam em socialização. E cumplicidade. A notícia que corre, transitando por despretensiosos diálogos.
Porém, “Oroslan” não é significativo apenas por isso. Sua narrativa se utiliza de uma construção da memória de um personagem que não está ali. Baseado na visão de terceiros, tentamos entender quem ele é. Alguns afetados pelo luto, outros pelas doses a mais de palinca (bebida destila típica daquela região da Europa). Não devemos ignorar aqueles que se sentem intimidados ou compelidos a proteger quem acabou de morrer de opiniões carregadas de julgamento – uma atitude que identificamos em qualquer cultura.
Nessa proposta de construção de memória, vem o mais fundamental legado da obra para o festival. Ivanisin, realizador de curtas e longas documentais, se apresenta como “estreante” na “ficção”. Duas expressões dignas de aspas porque estamos diante de um audiovisual moderno cada vez menos taxativo ou reducionista. Se há espaços nas sociedades que clamam pelo entendimento múltiplo e cooptativo de gêneros, o cinema (que já começa por quebrantar seu próprio nome) urge por um desapego a eles.
A ficcionalidade de “Oroslan” reside no fato dele ser baseado em um conto de Zdravko Duša, inspirado na peça “The Weir” de Conor McPherson, cuja adaptação na Eslovênia encontra-se em cartaz há duas décadas. Todavia, não há qualquer diferença entre as execuções e formas de pensar as narrativas e as imagens dos trabalhos anteriores do cineasta. Por isso não faz sentido sentenciar a produção como ficção e muito menos estreia. O que há de irreal em uma sequência de observação de um grupo de crianças jogando futebol? O fato de termos enquadramentos pensados e orientação dos participantes? Achar que não há tais expedientes em um documentário é um polianismo cinéfilo à beira da extinção. Comparando com “O Ano do Descobrimento“, documentário (assumido?), exibido no mesmo festival na mostra Novos Olhares, percebemos que até os locais onde partes das conversas acontecem se igualam.
Quanto mais aquele que se dispõe a amar a chamada sétima arte se desapegar de convenções, descrições e qualificações, mais tempo ela terá para aproveitar o que grandes cineastas como Ivanisin oferecem. Uma obra que valoriza a linguagem, sem gasta-la – e talvez por isso o título reúna a grande referência do cinema iraniano com um vocábulo que motiva o orgulho da língua portuguesa. Em “Oroslan” – se quisermos comparar com a produção espanhola acima citada – as representações acontecem de forma mais lúdica, de fato. Só que, tanto um filme quanto o outro, nos coloca diante de propostas imersivas de buscas pela verdade real. Só que a verdade real, como os anos de teoria penalista me convenceram, é a maior ficcionalidade já criada. Não encontra-la faz parte da viagem.
Clique aqui e visite a página oficial do Olhar de Cinema.
Clique aqui e visite nossa categoria do Festival Olhar de Cinema, com todos os textos.