Sinopse: Chamam-na de “ouro azul”. Em todo o mundo, a demanda por água está explodindo. Até 2050, pelo menos uma em cada quatro pessoas viverá em um país que sofre com a escassez de água – criando condições ideais para um novo mercado… Bancos e fundos de investimento estão correndo para investir bilhões de euros em qualquer coisa relacionada à água. Um verdadeiro monopólio está surgindo. “Os Senhores da Água” mostra como a financeirização da água é uma batalha que ocorre em muitas frentes: ideológica, política, ambiental e, é claro, econômica.
Direção: Jérôme Fritel
Título Original: Main basse sur l’eau (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 27min
País: França
Hidroliberal
Pensado como produto televisivo, “Os Senhores da Água” é um filme bem mais protocolar do que a média das produções selecionadas para a 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Feito para o grande público, não encontra dificuldades em definir a importância de seu objeto. A água, literalmente, está em todos os aspectos da nossa vida, participando de todos os processos produtivos e em todas as fases. Além, claro, de ser nossa fonte de sobrevivência. O que Jérôme Fritel quer é traçar linhas que deem conta da inauguração de debates. Para isso, usará sua experiência na direção de documentários televisivos generalistas sobre questões urgentes.
Há outros filmes que vão além desta abordagem primária. Porém, selecionar obras assim nos recortes do festival é fundamental para ampliação de público. O marco inicial do longa-metragem foi o verão europeu de 2019, mais um que bateu recordes de altas temperaturas. Isso vem gerando um desequilíbrio ruim entre a oferta e a demanda por água, um fato assustador por si só. O problema é que Wall Street planeja há muito capitalizar em cima da crise hídrica que fatalmente ganhará contornos drásticos em breve. Quando falamos sobre “Push: Ordem de Despejo” (2019) – também da Mostra Ecofalante – encerramos nosso raciocínio falando dos riscos de se transformar direitos fundamentais e elementos vitais para nossa sobrevivência em commodities.
Só que saímos da fase do risco e devemos tratar isto como uma certeza. Há um diálogo entre esta duas produções, por sinal. Apesar do documentário sueco falar dos perigos da concentração de títulos de propriedades em conglomerados que se valerão da especulação imobiliária, o longa-metragem francês propõe um futuro bem parecido no trato com a água. O que os economistas chamam de “revolução financeira”, cria em um primeiro momento os chamados Barões da Água. Alguns deles começam a abandonar o comércio do petróleo e migram do “ouro negro” para o “ouro azul”. Só que há desdobramentos e informações dão conta de que formas de se estocar o produto originário das chuvas já começam a ser implementadas. O que faria com que tivéssemos, em breve, Banqueiros da Água – que a tratariam como título de crédito e se valeriam da famigerada especulação para aumentar seus ganhos financeiros.
Imagina um mundo onde a água poderia sumir do mercado para que artificialmente seu preço aumentasse? “Os Senhores da Água” não define essa situação de maneira contundente, até porque já falamos que é uma obra que traça um panorama geral. Porém, nos traz a origem deste iminente caos. Ela está no neoliberalismo promovido na Europa a partir de Margaret Thatcher, que iniciou um processo de privatização da água no Reino Unido. Dois momentos chamam a atenção nesta abordagem: a retórica da finada Primeira-Ministra, que taxa a França como comunista e a pesquisa que traz o arrependimento dos britânicos trinta anos depois desta decisão governamental.
Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Sem querer colocar os dois no mesmo lado de uma balança, mas se há algo que o fascismo e o neoliberalismo têm em comum é apontar o dedo para qualquer pensamento contrário ao seu e, espumando, falar do fantasma do comunismo (bu!). No ano passado, até piada de mal gosto com a esposa do Presidente francês rolou por aqui. Já no que diz respeito ao arrependimento do povo, ele é questão de tempo para chegar a nós. Por sinal, “Os Senhores da Água” fez lembrar do início de 2020, uma época em que a covid-19 não tinha iniciado sua turnê mundial e no Rio de Janeiro nosso “único” “problema” era a água da CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro). Inventaram que uma alga fez com que o produto que chegava nas nossas torneiras estivesse com cheiro e aspecto de cocô. Passados alguns meses, chegaram à conclusão de que não tinha alga nenhuma, era cocô mesmo que a gente bebia (e fica a indicação do texto sobre o Episódio 3 da websérie “Na Fila do Sus”, que fala da saúde em favelas cariocas – onde desenvolvemos mais esse tema).
Trazendo as questões do filme para a nossa realidade, é fundamental lembrar deste episódio. Muita gente inteligente e capaz entende esta crise da CEDAE como algo fabricado, visto que o processo de privatização da empresa andou a passos largos depois disso. O Brasil também tem vivido seus problemas de desabastecimento. Na Baixada Fluminense, por exemplo, é comum que no meio do verão essa mesma empresa deixe de prover água por dois ou três dias (às vezes até mais). A quantidade de pessoas que passaram a furar poços artesianos em casa aumentou de tal maneira no país, que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) foi provocado no ano de 2017 a decidir – e deu ao Estado o poder total de gerir a água, permitindo que a população seja proibida de ter seu acesso direto ao bem vital.
Esta regulação, podem ter certeza, em algum momento gerará uma desregulamentação. O Estado não quer ter o poder sobre a água, ele só não quer que você tenha. Mas a sociedade encontrará seus caminhos. “Os Senhores da Água” dá uma pista, mesmo sem explorar. Em determinado momento, o cineasta Jérôme Fritel viaja à Austrália, um dos lugares mais quentes do planeta. Ali ele mostra como a pecuária consome muita água e as consequências do encarecimento deste insumo. Ou seja, estaríamos diante de uma provável crise de alimentos, já que os animais não se adaptarão à escassez de água a ponto de manter a oferta de proteína animal nos moldes atuais. Talvez a diminuição do consumo de carne deixe de ser uma filosofia ou ideologia a qual muitos discriminam e comece a ser incentivada a determinados grupos – para garantir o luxo de outros. Seria o rabo mordendo o cachorro. Irônico imaginar que o fazendeiro que aposta no aprofundamento do neoliberalismo pode acabar sendo o próximo na fila dos comunistas.