Sinopse: Documentário sobre comunidade quilombola localizada entre Salvador e Simões Filho (BA), foca o conflito pela propriedade de terra de uso tradicional, reivindicada pela Marinha do Brasil. O filme denuncia graves violações de direitos humanos e documenta aspectos culturais, simbólicos e características do território, conflitos gravados no calor da hora pelos próprios quilombolas.
Direção: Josias Pires Neto
Título Original: Quilombo Rio dos Macacos (2017)
Gênero: Documentário
Duração: 2 horas
País de Origem: Brasil
Genocídios Silenciosos da Madrugada
Após uma sessão de abertura de forte impacto, principalmente com a tocante parte final do curta “Na Missão, com Kadu” (leia a análise de Roberta Mathias clicando aqui), o primeiro dia da Mostra Lona 2020: Atravessamentos nos traz um documentário mais pautado na informação, deixando na temática boa parte de sua potencial de mensagem. “Quilombo Rio dos Macacos“, do cineasta Josias Pires Neto (Comunicador pela UFBA na formação, Mestre em Artes Cênicas e Doutorando em no Programa Multidisciplinar Pós Cultura pela mesma instituição) somente foi finalizado após arrecadar fundos em programa de financiamento coletivo. Ele atualmente é colunista do GGN. Mais do que trazer uma difícil questão acerca da remoção que envolve a Marinha do Brasil, o longa consegue – com extrema eficiência – tangenciar por abordagens que muitas das vezes surgem como opções para os cineastas. Aqui, Pires Neto entende que elas podem ser complementares.
O resultado é um documentário denso, de minutagem alta (são exatas duas horas de projeção). Faz uma viagem pelos anos de 2012 a 2017 a partir de um arco que se inicia e se completa com a relatora da ONU para moradia adequara, a arquiteta e urbanista Raquel Polnik. Ao contrário do que fazia parecer nas cenas iniciais, “Quilombo Rio dos Macacos” não é uma obra de descoberta, partindo de um terceiro estranho ao território. Essa impressão se desfaz quando as vozes e rostos que o seguem são quase exclusivamente da comunidade. Quem é estranho àquele núcleo se apresenta sempre em diálogo, nunca em discurso. O filme regurgita o que há de mais tenebroso no sistema de imposição da propriedade privada a qualquer interesse coletivo da nação brasileira. Se boa parte das obras apresentadas na Mostra Lona nos trará articulações da sociedade para conquistar e reconquistas de territórios usurpados ao longo da História, o filme de Pires Neto mostra a crueldade de um processo de remoção.
Triste pensar que boa parte do efetivo das Forças Armadas, que vagueiam com funções constitucionais que não lhe permitem serem protagonistas, não medem esforços para exercerem um poder de polícia que não lhes cabe e afeta qualquer análise isonômica em situações como a deste território. A partir da Base Naval de Aratu, teve-se início em 2012 um processo de remoção ainda em andamento, com batalhas vencidas dos dois lados. Por óbvio que o caminho ao qual o Brasil seguiu nas últimas eleições diminui (para não dizer esgota) a possibilidade de uma conclusão favorável àquela comunidade. Todavia, “Quilombo Rio dos Macacados” denuncia de pronto o que podemos considerar genocídios silenciosos da madrugada, momento do dia em que órgãos oficiais se travestem de para-oficiais e conseguem na marra calar vozes fundamentais no lado a qual insiste em antagonizar.
Uma primeira metade que aborda o cenário que configurou a disputa a partir de 2012 tem inserções importantes para a compreensão de quem vê no documentário uma peça informativa. Uma delas está na fala do advogado Pedro Diamantino e naquelas que mostram a forte adesão da classe artística, em especial quando trata da visita do rapper Emicida. Porém, além da denúncia da já citada prática genocida, chama a atenção o momento em que o embate no processo de remoção ganha corpo e chega ao Congresso Nacional. É quando será lido um trecho de um texto de Florestan Fernandez, escrito em 1988 – ano da promulgação da já combalida Constituição Federal. Ali fica claro como discursos progressistas insistem em serem fontes inoxidáveis em um país que parece não sair do lugar.
O agente público que “erra” (vocábulo usado quando, na verdade, são cometidos crimes) tem o privilégio de se aposentar com benefícios integrais, por exemplo. Uma nação que não sara suas feriadas, que não trata seus traumas, seguirá por séculos sendo o que sempre foi, tanto em relação aos povos silenciados e invisibilizados quanto em relação às Forças Armadas – todos protagonistas de “Quilombo Rio dos Macacos”. Quase como se aceitasse que este fato é irremediável, Josias Pires Neto amplia o leque de abordagens na segunda metade da obra, quando usa as negociações iniciadas no ano de 2014 para criar um grade registro dos ocupantes do território, com suas múltiplas vivências, individualidades e ofícios. Uma montagem que ameniza essa carga informativa, visto que descambaria em seus derradeiros momentos ao tratamento de uma demanda institucional, com longos debates públicos. Ao trazer os meandros da organização daquele território, o filme nos esfrega um senso de comunidade e uma noção de democracia participativa que nenhum regimento militar ou condomínio de classe média um dia terá.
Por fim, no ano de 2016 um muro (solução que desde a eleição do Agente Laranja voltou à moda) separando o território do que a Marinha considera sua base foi apontado como solução. Na verdade, uma clara tentativa de seguir sem entregar o pactuado no início da relação entre eles. O Quilombo Rio dos Macacos, a despeito de toda a estrutura prometida – e totalmente viável – segue sem água e saneamento. Houve resistência e os embates estão longe de acabar, mesmo que o documentário se encerre atingindo seu objetivo de contextualizar ao mesmo tempo que valoriza individualidades. Todavia, reportagem do final de 2019, da jornalista Tatiana Scalo pelos Jornalistas Livres (leia aqui a matéria), traz novo alerta dos genocídios silenciosos da madrugada.