Sinopse: Res Creata explora a relação milenar, ora conflituante, ora harmoniosa entre os seres humanos e os animais; uma relação onde a curiosidade, o amor e o deslumbramento muitas vezes se entrelaçam com a exploração, a objetificação e a necessidade. Ensaio visual ao mesmo tempo intimista e filosófico, o documentário procura jogar luz sobre o que nos conecta e sugere que se conseguirmos mudar o modo como pensamos sobre os animais, o ecossistema inteiro se beneficiará.
Direção: Alessandro Cattaneo
Título Original: Res Creata – Esseri Umani e Altri Animali (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Itália
Para Além de Descartes
Dentro do recorte de biodiversidade do panorama internacional contemporâneo da 10ª Mostra Ecofalante de Cinema, a produção italiana “Res Creata” é uma das obras mais concorridas da edição do festival. Isto porque ela é das poucas com limites de visualização, o que levará os mais interessados a assisti-la nas primeiras horas de exibição. O encaixe na agenda vale a pena, já que o documentário é daqueles que alia lindas imagens, das mais belas representações na natureza, com as questões mais urgentes envolvendo sua preservação.
A linha mestra aqui é a relação entre humanos e animais. Como ela se formou e se alterou em uma sociedade cada vez mais urbana. O individualismo e o distanciamento da terra enquanto elemento fundamental tira a identificação a quase todos as espécies que não sejam nossos pets de apartamento. Isso faz com que grupos inteiros sejam extintos sem que isso afete nossa percepção sobre o planeta. O que antes era uma poética simbiose hoje é um punhado de números, cada qual relacionando um bicho à função pela qual a humanidade o explora.
Assim como aconteceu com “Baleias Enredadas“, este longa-metragem também é multifocal. Nem sempre as abas abertas se fecham de forma eficiente, em mais uma construção panorâmica. Acho que teremos que nos acostumar com essa abordagem, reflexo direto não apenas das leitura sistemática da sociedade como da complexidade de todas as questões políticas e ambientais que nos envolve enquanto mundo globalizado. O diretor Alessandro Cattaneo alterna contemplações com falas que remontam a experiências de alguns depoentes. Adiciona, então, contextos filosóficos por discursos de especialistas.
No primeiro deles, o franco-argelino Jacques Derrida é citado, o que já se alinha às características elencadas no parágrafo anterior. Enquanto narrativa pautada na desconstrução, sua lição mencionada é aquela que questiona a amplitude do conceito de animal. Uma palavra que se torna inútil se pensarmos nos milhões de organismos e grupos diferentes que ele abarca. Sob qualquer perspectiva, da cadeira alimentar aos ciclos evolutivos, só mesmo Noé deveria ousar colocar todos em um mesmo barco.
Sendo assim, “Res Creata” nos propõe refletir sobre as origens do antropocentrismo e como Gilles Deleuze e Félix Guattari assim trabalharam para mostrar que “nos tornarmos”, de certa forma, também animais é parte do processo de tornar a vida uma existência potente, compondo com outras. Romper com essa hierarquia que só nos fez piores. O curioso do filme é como ele menciona essas obras clássicas como uma provocação e nos dá, na montagem, as ferramentas para que o espectador realize uma projeção empática, em exemplos de simbiose.
Isso talvez gere uma quebra de expectativa para alguns, ao mostrar um pastor que não faz de sua atividade um trabalho mecanizado. Aliado aos sentimentos de dependência e gratidão para com suas ovelhas, está o carinho. Está na dor quando ele precisa se despedir delas ao realizar uma venda, por exemplo. Ato continuo, o documentário se fixa em um grupo de flamingos, espécie das mais belas e mais independentes da natureza. Nos prepara para um discurso que atinge de forma direta a objetificação animal e como o peso de seus vidas é diferente de acordo com os espaços.
Se nos grandes centros urbanos há desumanização, a coexistência pacífica com outras espécies soa até folclórica. As artes costumam tratar algumas alegorias, geralmente envolvendo cavalos pelo que eles proporcionam aos seus donos ou então no companheirismo acidental com animais selvagens, de ursos a amigos pandas. Há também narrativas que surgem de vez em quando com muito sucesso, como “Professor Polvo“, documentário bem-sucedido da Netflix e vencedor do Oscar que traz uma amizade improvável.
Nas cidades, tudo isso parece existir no mundo ficcional. Para entendermos a dicotomia cooperação x exploração precisamos de exemplos reais. Por caminhos tortuosos, equilibrando o conteúdo filosófico, as cabeças falantes e o esplendor imagético, “Res Creata” consegue nos envolver a partir de várias frentes. Resta saber se, ao término da sessão, sua mensagem foi absorvida ou se descartada, como tem sido a regra geral.
Veja o Trailer:
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