Sinopse: A Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011 para apurar crimes cometidos durante a ditadura militar, trouxe a público um capítulo ainda muito obscuro da nossa história: a existência de um centro de detenção indígena, na cidade de Resplendor (MG), chamado Reformatório Krenak. Instalado primeiramente dentro do território da etnia Krenak, e posteriormente transferido para Carmésia, aprisionou e torturou não apenas indígenas Krenak, mas diversas outras etnias como os Pataxó, impondo restrições às suas práticas ancestrais sob implacável vigilância dos militares. O documentário mostra como funcionou esse campo de concentração, e as consequências desse trauma coletivo para os povos indígenas afetados.
Direção: Claudia Nunes e Erico Rassi
Título Original: Resplendor (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 52min
País: Brasil
Eclipse da Verdade
“Resplendor” é uma das obras da Mostra Ecofalante de Cinema que, até o momento, cumpriram um objetivo comum aos documentários: o de denunciar ou trazer à tona um fato desconhecido ou esquecido pela sociedade. O filme dirigido por Claudia Nunes e Erico Rassi conta a história de um presídio direcionado aos indígenas que operou entre os anos de 1967 e 1972, no auge da Ditadura Militar do Brasil. Apelidado de Reformatório, a construção se assemelhava a um Posto “normal” da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Lá dentro, centenas de pessoas eram mantidas sob cárcere e por vezes torturadas sob as acusações mais absurdas.
A existência do documentário só é possível pela criação da Comissão da Verdade em 2011 – que, a princípio, não incluiria os indígenas. Algumas obras audiovisuais têm se valido desse curto processo (para os padrões mundias) de se buscar o que aconteceu no país durante o governo autoritário, em um regime de exceção. Beth Formaggini, por exemplo, usou sua experiência em pesquisa e obtenção de respostas diretas a partir da condução de entrevistas – reflexo de colaboração com Eduardo Coutinho, para dirigir “Pastor Cláudio” (2017). Já a dupla Nunes e Rassi segue um caminho de reunião de arquivos, documentais ou de mídia, para se alinhar aos testemunhos colhidos.
Cláudia Nunes, inclusive, é responsável por um curta-metragem que trata da questão territorial sob um viés mais poético chamado “Rapsódia do Absurdo” (2007). Em “Resplendor”, os realizadores entendem que o assunto pede uma montagem mais tradicional, que consiga somar o fornecimento de informações mais básicas ao espectador sem domínio do assunto com as descobertas das investigações da Comissão da Verdade. Porém, nada que exagere no didatismo. Parte da história de um indígena preso por onze anos sob a acusação de embriaguez. Ao lado da vadiagem, esta era a conduta genérica que levava os militares a tirar a liberdade de um sem-número de representantes dos povos originários no período em que os fardados estiveram no poder.
O Brasil, lamentavelmente, é uma das piores nações no trato com sua Comissão da Verdade. Quem vai ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago, no Chile, se depara logo no hall de entrada com uma linha do tempo que engloba todas essas investigações de crimes praticados por governos autoritários ao redor do mundo. Algumas duraram décadas, denunciaram e prenderam centenas, garantiram reparações e descobriram o paradeiro de milhares de desaparecidos. A do nosso país está lá, quase ao final – encostada ao elevador que leva o visitante ao primeiro andar. Seus resultados foram muito modestos, resultado de uma resistência do Exército – já não bastasse a Lei de Anistia de 1979 (geral e irrestrita) e a demora de quase trinta anos de governos civis (sendo dez de um partido de esquerda) para que a comissão fosse instalada.
Há um ponto na condução de “Resplendor” que deixa escapar o assunto principal em sua parte final. Na tentativa de abarcar diversos pontos, por vezes escanteia o objeto pensado e apresentado a partir do presídio no território Krenak. Tenta construir uma ponte com o momento atual que talvez não fosse primordial, dada a força do que estava sendo tratado até então. De forma ligeira, ficamos sabendo sobre a forte militarização da área e como o povo Krenak foi responsável por uma grande resistência à chegada do homem branco. Imagens de vídeos institucionais contemplam o nacionalismo à brasileira, que na década de 1970 exagerou no ufanismo e na proposta de integração nacional, que na prática era apenas opressão às minorias (para usar um tempo da época).
Todavia, o que mais chama a atenção no filme é a tentativa de ensinar táticas militares a determinados grupos indígenas, para que eles pudessem atuar como uma extensão do Estado em suas comunidades e nas rivais. Quase como uma segunda Companhia de Jesus, em que o Exército faria as vezes da Igreja Católica e o filosofia repressora de guerra substituiria a religião. São poucas as imagens – e algumas comprovam que as técnicas de tortura faziam parte da formação – mas que se perdem em um conjunto de depoimentos e elementos que, apesar de ampliar as oportunidades de debate, tiram o foco de informações com o poder de chocar como esta.
Em “Amazônia Sociedade Anônima” falamos como aquela região viu um aumento de sua destruição no governo liderado pelos militares. Aqui há a prova, com o Presidente Médici inaugurando obras da rodovia transamazônica, enquanto o narrador da época falava da possibilidade de “conquistarmos definitivamente a Amazônia“. Com a importante contribuição de Rubens Valente, autor do livro “Os Fuzis e as Flechas“, que trata da resistência indígena na Ditadura, o episódio trazido por “Resplendor” acaba por ser bem contextualizado. No afã de ir além e aproximar o fato histórico com a realidade do público, toca – mesmo que com pouca profundidade – o importante ponto das novas tentativas de destruição dos direitos dos indígenas.
De fato, o que ainda faz com que os povos originários se mantenham na luta e ainda articulem institucionalmente suas demandas, é a proteção constitucional. Um Carta Magna que veio com a luz do progressismo na boleia, mesmo que a sombra do autoritarismo nunca tenha saído da paisagem brasileira. Basta lembram que em 1988, enquanto promulgávamos a Constituição, o atual Presidente da República ingressou na reserva do Exército para assumir uma cadeira na Câmera de Vereadores do Rio de Janeiro. Dois anos depois, ele já seria eleito Deputado Federal (com o apoio de 6% de todos os eleitores do Estado, sendo o mais votado).
As viúvas da Ditadura, na verdade, nunca velaram seu defunto – aproveitaram todas as oportunidades de recomeçar. Aliás, pensando nisso, talvez nossa Constituição já ter 32 anos seja a real surpresa de tudo isso. É fundamental que histórias como as contadas em “Resplendor” fiquem na memória – porque não há muito otimismo no horizonte e é provável que um dia ela se repetirá.