Sinopse: Pressionado por uma dor nas costas e pela grana sempre curta, Tiago (interpretado por Okado do Canal) tem um encontro que reconfigura o que sabe sobre o próprio pai, tornando iminente uma crise em seu modo de ser. Ambientado entre a periferia de Olinda e a classe média recifense, o filme contrasta os dois mundos sem ignorar ou achatar a complexidade das relações humanas. Nesse universo em que pulsam as batidas do rap e a vida em comunidade, o que entrevemos nas rachaduras de um modelo de família em ruínas é a construção de uma outra masculinidade.
Direção: Fellipe Fernandes
Título Original: Rio Doce (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 30min
País: Brasil
Futuro Revelador
Às vezes uma revelação sobre o passado surge na vida de alguém para dar sentido ao presente. Ainda não sabemos como parar o tempo ou girá-la ao contrário. Portanto, o que está dito, está dito. E o que não foi dito, feito, realizado – aquilo que foi negligenciado – também será uma marca eterna. “Rio Doce“, primeiro longa-metragem de Fellipe Fernandes, é um drama sobre Tiago (Okado do Canal), rapaz que descobre a identidade de seu pai biológico. Suas irmãs, até então ignoradas, aparecem na época de seu aniversário com uma carta enviada pela mãe do jovem ao, agora, falecido senhor.
Na conversa que o diretor e roteirista gravou com Camila Macedo no canal oficial do 10º Olhar de Cinema no YouTube – e que você assiste ao final da crítica – ele admite que o projeto foi ganhando outra forma através do tempo. O protagonista sequer existia, a obra não teria esse “filho de fora”, envolveria as dinâmicas familiares com a partida do progenitor. Sem dúvida a criatividade e o talento do cineasta atrairia questões importantes ao filme, mas ele seria muito diferente desse que assistimos na mostra competitiva do festival.
Há um diálogo temático com “Mirador” (2021), exibido na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes deste ano e que está disponível em janela de exibição da Olhares Brasil no mesmo dia. Uma leitura moderna sobre a paternidade negra, em contraposição ao abandono da geração que lhe sucedeu. Lá, Edilson Silva (que participa também de “Rio Doce”) é apresentado por Bruno Costa em uma narrativa mais convencional. Ele divide seu tempo entre trabalho, treino e os cuidados da filha, em uma abordagem que foge do heroísmo.
Já aqui as conexões com o afeto negado são internalizadas. Tiago está no meio do caminho, ele é o filho que foi negligenciado, mas também é o pai que negligencia. O terremoto que a revelação lhe traz não é tão intenso, provoca mais estranhamento. Ele se sente perdido ao ocupar um espaço com alguns rótulos que lhe acompanha – sem conhecer e saber nada das outras pessoas. Além disso, não bastasse descobrir um núcleo familiar novo, ainda testemunha uma das irmãs guardar rancor pelo pai falecido ter omitido aquela informação ao longo de toda a vida.
Okado do Canal, da favela de mesmo nome no bairro do Arruda, em Recife, é um egresso do hip hop desde jovem. Hoje, com 28 anos, é uma das principais lideranças periféricas de seu território. Além de rapper, é produtor cultural no coletivo Favela News, projeto da ONG Usina da Imaginação. Lançada em 2018, a música “Às Vezes Dói ser Forte“, usada nos créditos de “Rio Doce” e gravada ao lado de Zord, parece ter sido pensada para se encaixar na história de Tiago.
Criado para reproduzir a masculinidade tóxica, para ser tão inabalável quanto negligente enquanto homem e pai, ele se vê em uma situação na qual projeta o futuro de sua filha a partir do abandono que sofreu no passado. A revelação da paternidade faz com que esses caminhos se cruzem no mesmo espaço-tempo, não deixando que as memórias autoindulgentes tirassem a força de seu sentimento sobre o que lhe aconteceu enquanto filho. Por conta disso, se tornar um pai melhor. Ou, pelo menos, mais presente – como termina planejando.
Fernandes usa o onírico nos minutos finais, para transformar esse processo de autoquestionamento de Tiago uma metáfora ao leão interno que ele precisa domar. Usando fotografias e arquivos que registram a adolescência do protagonista e a cidade como uma personagem fundamental para a narrativa, “Rio Doce” segue a cartilha do pulsante audiovisual contemporâneo brasileiro. Mais um exemplar que tem première mundial no Olhar de Cinema e que, saberemos, ocupará importantes espaços no circuito e festivais em 2022.
A consultoria de roteiro de André Novais Oliveira faz todo o sentido em uma obra que reúne rostos conhecidos e atores em ascensão e tem como foco o carisma de Okado do Canal. A execução dessa dinâmica é uma mediação difícil, mas garante uma ótima sessão, carregada de reflexões. Ou seja, Fellipe Fernandes é daqueles que entra no ambiente colocando seu nome na lista.
Assiste à conversa entre Camila Macedo e Fellipe Fernandes sobre “Rio Doce”: