Sinopse: Antão é ferido, preso e morto quando bando de jagunços de Jesuíno invade cidade de Sertânia. O filme projeta a mente febril e delirante de Antão, que rememora os acontecimentos.
Direção: Geraldo Sarno
Título Original: Sertânia (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 37min
País: Brasil
A Morte e a Morte D.
Seguindo uma seleção que ainda não mergulha profundamente no experimentalismo, pinçamos dentro da programação do Festival Ecrã, “Sertânia“, primeiro filme do veterano cineasta Geraldo Sarno desde 2010 – e a primeira ficção desde o final da década de 1970. É curioso quando o Cinema te coloca diante de uma experiência já testemunhada na vida real, como se corroborasse com uma história que você entendia não ser plausível, talvez justificando na (eventual) mente perturbada do outro o que a ausência da própria fé criou em ti.
É um início de critica extracorpórea – e extra-sessão, é bem verdade. Mas o longa-metragem, que insere a vivência em outros planos de existência paulatinamente, reservando ao terço final as representações em cima dessas possibilidades, já dialogava com algo que me contavam quando era criança. Assim como Antão (Vertin Moura) insiste em não ver seu rito de passagem inicial como a morte, uma pessoa próxima sempre me dizia que passou por algo parecido. Ao dar à luz ao meu pai, minha avó morreu. Ao chegar no seu rito de transição, ela se negou a ir, disse que não era a hora dela, o momento era de resolver questões entre os mundos – mas em especial ao bebê que nascia. Viveu 63 anos depois disso.
Pois em “Sertânia” o que está em jogo são as mortes e seus desejos. Não há vida que se mantenha com todas as escolhas feitas por Sarno. A morte inaugura as ações, com Antão sofrendo o tiro fatal. A partir dali, ele rasteja – e delira. Quando se delirava no sertão, na época representada pelo filme, lembranças de encontros com Antônio Conselheiro em Canudos ou Padre Cícero em Juazeiro do Norte eram possíveis – e até prováveis. O protagonista, ignora lenda propagada para servir de conforto para nossas mentes que apodrecerão a sete palmos da terra, não “vê a vida diante de seus olhos”. Ele constrói uma nova, em que antes de ser um gavião caçador de cobras, pode ser uma jararaca. Também pode ser alistado para “defender a república da baderna dos liberais“.
Esteticamente, Geraldo Sarno pensa sua obra com um estilismo raramente visto. A fotografia em preto e branco, a destreza dos planos. Uma reconstituição da Última Ceia. A câmera parece sempre querer unir a poesia com o primor técnico. Usando o regionalismo como mote de sua filmografia, ele provavelmente não quis requentar cansadas abordagens de um Cinema Brasileiro que há muito usa o sertão como cenário. Já foi produto de exportação na era dos estúdios, já foi promotor de convulsão social no Cinema Novo e já foi resgate e desmistificação do olhar estrangeiro na Retomada. Hoje é ferramenta de representatividade e fomento de debates sobre a sociedade – e por isso seguimos aqui.
Mas o que o cineasta quer é fugir dessas percepções, seja da época que for. Parece querer traçar o paralelo com o gênero tipicamente brasileiro e o faroeste e dar ao seu filme o mesmo ar de definitividade que Clint Eastwood pulverizou no ar ao lançar “Os Imperdoáveis” (1992). Terminamos de assistir “Sertânia” na dúvida se encontraremos uma nova produção que retorne a essa maneira de trazer a tradição daquele território para as telas. Sem contar que centraliza a morte no foco da obra. Os horizontes que se abrem quando é possível materializar o fim, mesmo que em um processo de sofrimento como o de Antão, sempre atrairá o espectador. Mas Sarno constrói essa narrativa ao seu modo, alinhada com um estilo impecável, de beleza singular.
O protagonista acaba por ser um homem que não consegue resolver suas carências. Perde a referência masculina e depois a feminina. Não sabe em que lado está de um conflito do Brasil contra o Brasil. “Sertânia” passa ao largo de questões sobre institucionalização e grupos opressores locais, usa o personagem principal como bússola única. Quando o filme nos leva a outro plano de existência no terço final, de fato, as respostas se tornam indiferentes. Antão talvez sequer saiba as perguntas que quer fazer e, com a possibilidade de acessar aqueles que o abandonaram no mundo carnal, parece uma alma mais assombrada do que os espíritos que ali vagueiam.
Todavia, “Sertânia” reserva para seu final uma maneira de tocar o espectador. Mesmo deixando claro que estamos diante de uma história sobre uma morte (quando ele renega o rito de passagem na primeira, saberemos que terá uma segunda); mesmo entregando todos os pontos da formação do caráter de Antão; o filme encontra no termo inicial de si – o tiro que faria aquele homem rastejar e delirar – uma grandiosa justeza. “O povo não tem culpa de passar fome“, diz o protagonista. E Geraldo Sarno, que em alguns momentos do longa-metragem usa da conhecida tática do enquadramento frontal para valorizar individualidades – quebrando todo o estilismo que permeia sua construção, mas ao mesmo tempo contribuindo com ele – encerra com uma frontalidade ampliada. Reúne famílias e a emoldura como retratos. É exagerar na frase de efeito, mas não deixa de ser retratos do Brasil, trançada com uma tradicional quadrilha e verbalizada com um chamado: apesar de tudo, somos todos brasileiros.
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