Sofá

Sofá

Sinopse: Paródia tropical. Joana D’Arc, ex-professora da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, tenta recuperar sua casa, perdida para a Prefeitura. A trajetória é compartilhada pelo pescador pirata Pharaó, da Baía de Guanabara.
Direção: Bruno Safadi
Título Original: Sofá (2019)
Gênero: Ficção
Duração: 1h 12min
País: Brasil

Sofá

A Mágica do Desterro

Sofá” é uma história sobre luta por propriedade e direitos básicos. Não sou eu quem diz isso e sim Joana D’Arc (Ingrid Guimarães), a protagonista do longa-metragem dirigido por Bruno Safadi. Acostumado a transitar por grandes festivais nacionais e internacionais, o cineasta segue na missão de costurar a realidade em linha egípcia. Depila os pelos da nossa sociedade sem nos deixar irritado ou machucado. Até um Pharaó (Chay Suede) ele traz na obra, idealizada e executada por ele, mas flagrantemente uma construção coletiva entre essas pontas. Só que esse faraó é, na verdade, um pirata – o que combina mais com o Brasil da Idade Média ao qual vivemos.

É na maior avenida da cidade do Rio de Janeiro que Safdi nos faz andar para trás. Uma cena breve, que amplifica a sensação de danosa regressão ao qual estamos passando. A Cidade Olímpica foi um exemplo de sucesso. Para a especulação imobiliária. Falamos dos procedimentos utilizados pelo mercado na crítica de “Push: Ordem de Despejo“. Com muito mais poesia, o que “Sofá” traz é um desdobramento desta política. O auge do caos, este mesmo que aqueles que usam palavras como “flexibilização” e “empreendedorismo” em seus discursos querem testemunhar.

Em 2016 sediamos os Jogos Olímpicos, mas a obra da Avenida Brasil segue inacabada. A Cidade Maravilhosa é um paraíso em eterna construção – e destruição – e desocupação. Algumas áreas do município foram alvo de remoções violentas e cruéis, de uma parcela da população que teve que abandonar o local onde sempre viveram (por vezes, até mais de uma geração) – sem direito de carregar quase nada. A porta da rua foi serventia da própria casa. Falamos do mesmo Eduardo Paes que posou para selfies nos armazéns do Píer Mauá com partidários de Marcelo Freixo, a elite que cheia de fair play degustava cerveja no Mondial de La Bière. Enquanto que, perto dali, na região do Valongo, empilhavam-se tragédias – arqueológicas e humanas.

Safadi conduz seu “Sofá” para a beira da Baía de Guanabara e ali explora a presença de dois globais artificialmente desglamourizados. Prontos para nos colocar em um mundo que pode ser tanto invertido (quanto o posicionamento de algumas cenas), quanto cor-de-rosa (quanto o filtro aplicado em algumas imagens). Emily é a única que parece ver a realidade na saturação certa. Joana, não, essa está sempre emocionada com as possibilidades que a vida de professora lhe permite. Do Pharaó ela resgata a missão juramentada de não negar educação. De Ronaldo, lembra do desafio de reencontrar um ex-aluno e procurar saber como a experiência educacional influenciou em sua vida adulta.

Há imagens que resgatam um Rio de Janeiro clichê e outras que deixam o espectador deslumbrado a partir do estranhamento. Um exemplo da primeira é a construção da violência. O som dos tiros. Ah, mas não é possível! Lá vem tiroteio só porque é no Rio… Sim, more aqui e se valha deste barulho como canção de ninar. Já a segunda fica por conta dos inesquecíveis passeios do sofá que dá título ao filme. Um filtro mais solar reserva a ele os momentos de estrelato – um, inesquecível, tem a igreja da Candelária de fundo. Nessa transição de filtros, vão se abrindo possibilidades de conflitos entre sonho e realidade – por vezes um diálogo tem um tratamento de imagem específico para cada personagem, permitindo essa sensação.

Disponível por dez dias no Festival Ecrã, é uma ótima oportunidade para aqueles que gostam de rever diversas vezes uma obra, em sequência. “Sofá”, sem dúvida, se apresentará como um labirinto de visões, mesmo que se pauta em uma linearidade. As reivindicações de Joana, nos primeiros contatos com o Prefeito (Nizo Neto), por exemplo. Se repetem, aproximando e afastando. A claquete induz à ficcionalidade, mas os sedentos por comprar a briga da protagonista verão ali um exemplo de como o Brasil não dá ouvidos a quem precisa. Direitos básicos, ela mesmo disse que essa história assim seria. Todavia, mora em um país carregado de previsibilidade.

Uma nação capaz de deixar professores nas ruas (morando ou protestando), com seus poucos bens a tiracolo. Casas e escolas destruídas. A cena em que ela retorna à sua morada faz lembrar o curta “Linhas Tortas” (2019) Só que ali os escombros eram de um local de ensino. O diretor constrói como um folhetim, se valendo de elementos que naturalmente nos levam a esse entendimento. Recortes de jornais, a caricatura de prefeito com um ator de larga experiência no trabalho de dublagem, figurino e bigodinho carregados de anacronismos. Se pensarmos neles isoladamente, Safadi faz de tudo para que apliquemos nossas referências ao assistir ao filme.

Mesmo assim, com toda essa abordagem que flerta com o tradicional e o linear, ele desmonta – diversas vezes – esse processo. Regressões e sonhos, de início. Ao final, em uma triste epopeia, traz a idealização. Joana, que tanto ama seu ofício, enfeitando seu sofá reencontrado com livros quando pode, encontra uma mágica solução para o seu problema. Não há olhar humanista naqueles que têm o poder nas mãos. Só se render votos. “Sofá” só acaba quando termina, infelizmente. Lamentamos por Joana, mas foi ela quem alertou que essa seria uma história de luta por propriedades e direitos básicos. Nós dissemos que o Brasil é carregado de previsibilidade. “There’s no such thing as magic“, disse uma vez um antagonista pop do CInema. Mesmo assim, volte a fita. Reveja o filme, até acreditar que tudo terminará bem.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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