Suspensão

Suspensão

Sinopse: “Suspensão” nos leva às selvas do sul da Colômbia, onde há uma grande ponte de concreto abandonada. A ponte colide com a montanha, e é o fim de uma estrada que não leva a lugar algum. Esse trabalho de infraestrutura simboliza a obsessão de várias gerações de engenheiros, que tentaram transpor as imponentes montanhas ao pé da Amazônia. Depois de quase um século de tentativas, as promessas de uma estrada moderna se perderam, e a ponte se tornou cenário das situações mais absurdas. Trabalhadores, engenheiros e turistas passam pelo teatro ilusório da infraestrutura. Todos parecem perdidos no tempo, até que ocorre um incidente inesperado.
Direção: Simón Uribe
Título Original: Suspensión (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Colômbia

Suspensão

Tragédias e Tragédias

A capacidade da Humanidade se adaptar é notável e quando as amarras do capital, muito bem engendradas pelo conceito de Estado soberano se impõe, histórias entendidas como extraordinárias são, na verdade, apenas bizarramente impressionantes. “Suspensão” é um exemplo de como uma região, em que os povos originários tão bem ali habitavam, dá espaço a um modelo que aplica conceitos engessados de unificação de condutas, baseado no que a autointitulada Sociedade Moderna acha ser o certo. O documentário colombiano dirigido por Simón Uribe nos leva a Mocoa, cidade no sul do país e dentro da área da Cordilheira dos Andes e aos pés da Floresta Amazônica.

Conhecida por seus deslizamentos de terras que vitimizam dezenas de pessoas vez em sempre, mesmo assim é a sede da subdivisão político-administrativa colombiana, de uma região conhecida como Putumayo. Pela força dentro daquele território, é vista como local estratégico, apesar da natureza nunca ter sido receptiva. Na introdução da obra, fotografias dos primeiros serviços que chegaram ali, a primeira tentativa de construir uma estrada que ligasse Mocoa a San Fracisco (também de Putumayo) é seguida de vídeos de produção aparentemente caseira das décadas de 1980 e 1990. Mais adiante saberemos que o ano de 1944 marcou essa chegada oficial do poder institucionalizado e do sonhos da Engenharia em provar seu ponto.

O povo, que sabe mais de si do que aqueles que os comanda, apelidou a “tentativa de estrada” carinhosamente de Trampolim da Morte. Trata-se de uma obra em eterna construção, com perigos que se assemelham muito aos vistos na época em que foi erguida a Ponte Rio-Niterói, empreendimento que – oficialmente – deixou um legado de mais de trinta mortes. A América do Sul, principalmente na zona da cordilheira, encontra muitos desafios à lógica e essa ligação terrestre é uma delas. Como a vida parece nunca ter valido muito, é fácil transitar por estradas como a mencionada em “Suspensão”.

Uma delas liga Santiago, capital do Chile à Mendoza, a turística cidade argentina. Rota que pude fazer de ônibus, fundamental para compreender um pouco desse atrito entre os dois países e a maneira como os hermanos se tratam entre si. E também para testemunhar as consequências de ocuparmos espaços que o planeta não pensou para nosso modelo de sociedade. No dia da volta, uma nevasca me deixou dois dias a mais no lado argentino porque a dependência dos fatores meteorológicos sempre existirá nesse bolsão. O que “Suspensão” faz é mostrar como, na verdade, ela sempre existiu – e a tentativa de formatação do território é uma cisma do modelo inaugurado com a colonização. Já na Bolívia, o perigo de uma estrada parecida a transformou em destino turístico. Coisas do capital.

Ao falarmos sobre “Amazônia Sociedade Anônima“, outra produção da mostra competitiva latino-americana da 9ª Mostra Ecofalante, nos chamou a atenção uma fala que dizia que “sem queimadas na Amazônia, não existiria Brasil”, falácia desmistificada por Estêvão Ciavatta na trajetória do seu longa-metragem. Aqui, no entanto, o filme é montado para resgatar um passado de inúmeras tragédias relacionadas ao clima, não apenas pelas tentativas de construção da estrada. Há também os, cada vez mais, constantes transbordamentos do rios da região.

Uma terra rica em biomassa, o que potencializa um “acidente” como este. Na madrugada de 31 de março a primeiro de abril de 2017, a pior das catástrofes se materializou, com a morte de quase mil e quinhentas pessoas e mais de duzentos desaparecidos (até hoje). Um fato que aconteceu quatro meses depois da queda do avião que levava os jogadores da Chapecoense ao país e que me fez questionar se a empatia e a solidariedade que recebemos dos colombianos foi observada por nós quando eles passaram por este drama. Uma tragédia que fatalmente se repetirá com uma frequência ainda maior, já que todos nós estamos firmes e fortes contribuindo para um planeta mais quente, com menos recursos naturais e gritando por nossa extinção.

Sendo assim, o que “Suspensão” faz é fornecer mais um exemplo de como o progresso prometido aos latino-americanos é uma mentira. O que acontece na prática é a ocupação, reconfiguração e destruição de territórios plurais, carregados de ancestralidade e uma mística que fazia com que a América – antes de ser assim imaginada – fosse um local múltiplo e fascinante. Mas não adianta, seguiremos comprando a ideia de que nos equiparar ao modelo vendido nos levará ao triunfo. Neste documentário, contudo, temos um pouco mais de certeza de que nosso progresso é um processo que ficará eternamente “em suspensão”.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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