Taguatinga 2020 | Sessão 01 da Mostra Paralela

Sessão 01 da Mostra Paralela

A Sessão 01 da Mostra Paralela do 15º Festival Taguatinga de Cinema trouxe um recorte a partir de três curtas-metragens documentais que, de maneira suave e homogênea, transitaram por questões de gênero, corporalidade até alcançar uma ramificação do debate racial que ganha cada vez mais espaço na sociedade. Na linguagem, parte de uma produção quase poética, com um flerte pelo lúdico para entregar na sequência uma estética muito mais informativa.

Vai, na sequência, de uma obra que tenta abraçar uma multiplicidade de subtemas dentro do objeto escolhido, até um potente condensamento dentro de um outro objeto.

Se valendo dentro do audiovisual como filmes que merecem ser comparados sob a perspectiva da linguagem, na área da comunicação e da relação com o espectador, é possível identificar mais de uma função – dependendo do momento e local onde serão apresentados.


Leve e Demonstrativo

Ruth

Ruth” abre a Sessão 01 da Mostra Paralela. O realizador Igor Dalbone nos traz uma obra carregada de leveza, desde o princípio. A protagonista surge como uma solitária passista no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo. Ela está em paz consigo mesma e essa paz de espírito acaba sendo refletida ao longo de toda a jornada. Antes de ter voz no filme, as roupas femininas no varal e uma trilha sonora remontando à solidão poderiam deixar dúvidas ao público sobre os sentimentos que passam pela cabeça de Ruth – e de Dárcio, com quem divide os mesmos pensamentos.

Dalbone usa os primeiros minutos para pulverizar os estereótipos visuais da dicotomia feminino/masculino. A mesma pessoa que recolhe suas roupas do varal surge mexendo em um carro com a destreza de um mecânico. Na cozinha, o avental preto com o escudo do Corinthians poderia antecipar um churrasco com os amigos, se não fossem as luvas de limpeza rosas. O espectador que busca nesse semiótica uma “explicação” para a caracterização do protagonista, precisa rapidamente afastar o preconceito e se decidir logo pelo caminho que lhe trará a mesma paz de Ruth: somos únicos, temos nossas particularidades – e a felicidade de cada um merece o respeito.

Os depoimentos da protagonista – que demandam quase todo o tempo de projeção, à exceção das sequências mais lúdicas e alguns enxertos breves das filhas, dialogam muito com o longa-metragem “Laerte-se” (2017), de Eliane Brum, onde conhecemos a verdadeira Laerte Coutinho, aquela que nem o fã mais obcecado pelas obras da artista tinha conhecimento por muito tempo. Ruth, após a viuvez, encontrou no Carnaval – época de libertação – um rito de passagem. O que Dalbone faz é  reconstituir esse encontro dela com ela mesma.


Pesado e Informativo

Homens Invisíveis

A Sessão 01 da Mostra Paralela segue com “Homens Invisíveis“, obra de Luis Carlos de Alencar que apresenta casos de homens trans integrantes do sistema carcerário, que cumpriram/cumprem suas penas em presídios femininos. A abordagem inicial, com imagens fechadas e planos que realçam as partes dos corpos daquelas pessoas, é tradicional no gênero documental. Alencar faz uma ambientação em locais abertos, muito arborizados, para deixar no segundo momento de seu curta-metragem o sistema prisional como cenário. Faz isso com claros objetivos.

O principal deles é a humanização, se valendo de um processo de concessão de visibilidade – em conjunto com voz – àqueles homens. Quando há a transição estética, que se valerá de uma linguagem mais informativa, quase jornalística, o espectador já conhece nomes, rostos e vidas. É possível materializar o sofrimento e os desrespeitos sofridos, até mesmo com exemplificações prévias. Quando esse conteúdo mais informativo ganha corpo, com importantes e ainda necessárias contextualizações acerca de questões de gênero, não há por parte do espectador um excesso de elementos e dados que poderiam transformar essa produção em algo mais formulaico.

Desta forma, “Homens Invisíveis” nos traz um cenário de falta de dignidade, iniciada desde a revista que antecede a entrada ao cárcere. Um local em que os casos de preconceito são múltiplos e de todas as relações existentes. Um local onde ninguém os entende e a carência afetiva, a carência humanitária, fatalmente os levam a se relacionar entre si. Há a invasiva abordagem ginecológica e a ausência de regulamentação específica nas leis brasileiras, que se valem de um ordenamento mambembe em relação ao direito de pessoas trans.

A consciência dos entrevistados amplia o campo de visão e nos traz pontos como o recrudescimento do próprio machismo por parte deles, que se veem compelidos a praticar um comportamento quase criminoso como método de defesa. Que a ressocialização no sistema prisional brasileiro é uma falácia, há muito sabemos. Mas a adição da visão dos “Homens Invisíveis” adiciona uma carga de alta potência.


Duro e Provocador

Ruído Branco

Ruído Branco” encerra a Sessão 01 da Mostra Paralela. Gabriel Fonseca Silva e Souza se vale – em sua introdução – de fotografias e imagens de arquivo, incluindo obras clássicas do Cinema Brasileiro como “O Descobrimento do Brasil” (1936) de Humberto Mauro e “Alma no Olho” (1973) de Zózimo Bulbul. Com um texto forte, escrito pelo cineasta ao lado da realizadora Stephanie Oliveira, o curta-metragem parte do ódio. Não apenas mostrando a força do ódio como discurso entre pessoas, mas o processo de incutir um ódio sobre si. Sobre seu cabelos, seus traços, sobre o que você é – com o orgulho que deve ser inerente a ser.

Com isso, o filme inicia a trajetória onde entrevistados de diversas faixas etárias falam do auto embranquecimento, antes que concluíssem que o praticavam como reflexo da opressão da sociedade. No momento mais tocante, uma das senhoras ouvidas fala de como demorou quase toda a vida para entender sua negritude e se orgulhar dela. A falta de acesso à informação pode provocar essas conscientizações tardias. Só que elas podem tardar, mas nunca falham. Dessa maneira, Gabriel Fonseca amplia o debate sobre o colorismo, que cada vez mais ganha o merecido espaço na sociedade. “Ruído Branco” é quase tão informativo quanto à obra anterior. Todavia, ele precisa de uma carga de provocação. Ele precisa atingir certos pontos.

Só que o curta-metragem atinge esse objetivo com um interessante equilíbrio. Há uma maneira de trazer na parte final, de maneira quase didática, a política de Estado supremacista branca a partir da tese racista de João Batista Lacerda e sua análise sobre o quadro “A Redenção de Cam“. Há um potencial muito forte de uso dessa produção como fomentador de debates, principalmente entre os mais jovens e aqueles com poucas informações sobre o assunto. Isso traz um simbolismo para o término da sessão, que nos instiga a saber mais. Falar mais. E, principalmente, ouvir muito mais.


Ficha Técnica da Sessão

Ruth (Igor Dalbone, 15″ – 2019, São Paulo)
Sinopse: Ruth ama o carnaval. Dárcio vai sempre com ela.
Homens Invisíveis
 (Luis Carlos de Alencar, 25″ – 2019, Rio de Janeiro)
Sinopse: Um olhar para a situação da população de transmasculinos nas prisões, a partir dos problemas gerados pelo desconhecimento, transfobia, preconceito e discriminação.
Ruído Branco (Gabriel Fonseca Silva e Souza, 15″ – 2019, São Paulo)
Sinopse: Através de uma linguagem poética, “ruído branco” busca refletir sobre os processos de embranquecimento que o Brasil sofreu durantes 130 anos, após a abolição da escravatura. Como isso atinge nossas descendências e dificulta a busca da identidade das pessoas negras em um país historicamente racista.


Podcast

Apostila Festivais #002: Mostra Paralela e Competitiva – Sessão 01


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Apostila Festivais #002: Mostra Paralela e Competitiva – Sessão 01

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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