Sinopse: James Benning e Sofia Brito assistem a um filme de Arturo Ripsetin no canal de TV Telemundo. Ocasionalmente eles falam entre vi, mas nunca sobre o filme.
Direção: James Benning
Título Original: Telemundo (2018)
Gênero: Documentário Experimental
Duração: 1h 23min
País: Estados Unidos
Prosas Inversos
Dois grandes momentos reúnem a juventude da crítica carioca de cinema em uma comunhão de paixões. A primeira foi testemunhada na última edição do Festival do Rio, quando o português Pedro Costa exibiu “Vitalina Varela” naquela que talvez tenha sido a única sessão que ultrapassou a lotação máxima, com corredores do Estação de Botafogo abarrotados de admiradores (aliás, a outra sessão lotada foi a de “O Caso Richard Jewell” em um domingo à noite em Copacabana – sem a presença de Clint, infelizmente). A segunda é a já tradicional exibição de trabalhos de James Benning no Festival Ecrã. Dois realizadores veteranos que recebem merecidas e efusivas considerações sobre suas obras, por carregarem elas de possibilidades de linguagens e abandonos de narrativas que resgatam uma aura existencialista no fruir audiovisual. Algo que todas as técnicas desenvolvidas ao longo de mais de um século não nos permite mais, culpa do nosso vício no olhar.
Em “Telemundo” a provocação do cineasta norte-americano nos coloca diante de uma experiência, ao lado de Sofia Brito. Eles assistem a “O Castelo da Pureza” (1973), de Arturo Ripstein. Uma importante obra do cinema mexicano que é difícil acreditar que Benning não tenha visto algumas vezes. Ouvimos apenas parte do áudio do filme. Ele e Sofia não se privam de conversar, sobre qualquer assunto sem ser o longa-metragem, exibido com anúncios. Ela fala em espanhol, ele em inglês. O realizador pediu que não houvesse a intervenção de legendas.
Ali ficamos, permanecemos por quase uma hora e meia nessa experiência. Mas o que é trazido ali (não apenas na trama do filme de Ripstein, como nos autores e obras citadas – e elencadas nos créditos) são mais do que convites para uma jornada de auto entendimento como um legado literário que Benning quer nos deixar. “O Castelo da Pureza” conta a história de um homem que mantém sua família em casa, tentando protegê-los da Humanidade. Já não bastasse essa confluência cósmica que nos fez assistir a “Telemundo” na solidão de nossas casas e não na Cinemateca do MAM, onde ocorre anualmente o Festival Ecrã. Quis o destino que nessa edição em especial James Benning fosse um dos prováveis convidados internacionais, como Pedro Tavares – curador da mostra – confidenciou no Twitter semanas antes da realização do evento online. Ficamos nós aqui, condenados a permanecer dentro de casa, protegidos não somente de um vírus, mas também da mesma Humanidade que insiste em não concentrar esforços para diminuir a proliferação da doença – achando que deve viver normalmente.
Porém, o filme ainda passeia por dois séculos da Literatura. Do XIX nos traz Henry David Thoreau, o autor de “A Desobediência Civil”. Uma obra que deveria fazer parte do programa de alfabetização para que já nos tornássemos cidadãos desde cedo – mas esse debate deixamos para outra hora. Benning nos indica aqui “Walden”, que não deixa de ser um manifesto contra a sociedade industrial, mas que se vale de uma jornada de auto conhecimento – a primeira delas. Thoreau e Rubinstein trazem esse medo da força destruidora da sociedade de forma mais generalista, usando a ficcionalidade para deixar o receptor da mensagem aplicar suas próprias projeções. Talvez sejam as formas mais convencionais de diálogo com “Telemundo”.
Por outro lado, Benning traz dois autores contemporâneos, de línguas latinas. A argentina Alejandra Pizarnik, de escritos publicados nos anos 1960 e 1970, é a materialização dessa jornada de auto conhecimento, porém de maneira trágica. Uma alma que conviveu com falta de auto-estima e sem aceitação de si, seguindo um caminho de vícios em remédios que tirou sua vida com menos de quarenta anos. O mesmo martírio da existência que concede uma leitura muito particular de outra produção apresentada no Ecrã, o brasileiro “Passou“. Já o italiano Alessandro Baricco tem um livro chamado “Seda” que usa o poder das palavras para fazer seu protagonista reencontrar suas lembranças – e, por tabela, reencontrar a si. Já a indicação benningniana, “City” segue outro caminho, o do território como personagem, concedendo à representação da cidade o destaque.
Nesse escopo de autorias, “Telemundo” segue até que Sofia quebra a quarta parede nos minutos finais para trazer a palavra de Jean-Pierre Garnier Malet, um pesquisador considerando, por muitos, brilhante. Ela nos descreve a teoria do desdobramento do tempo e nos fornece o veneno de rato que o protagonista do filme de Rubinstein tenta fabricar. Nessa proposta, teríamos a possibilidade de mudar nosso futuro e ter uma vida mais calma. Isso porque todas as expressões temporais e planos existenciais já convivem harmonicamente, devemos apenas aprender a dominá-los. Mais uma vez menciono um realizador ao qual Roberta Mathias possui muito mais a dizer (assim como fizemos na análise da primeira temporada de “Dark”), mas é algo parecido com as possibilidades oferecidas por Alejandro Jodorowsky de rompimento das barreiras de presente, passado e futuro.
Uma barreira que James Benning faz da plenitude de seu sofá. Nos faz transitar de meados do século XIX, onde o Capitalismo afiava suas garras, até uma obra vendida como uma revolução comportamental, quase uma mágica de guru, nesses atribulados anos do século XXI. “Telemundo” pode ser também um obra de observação, uma simples interação à distância. Assim como ele, podemos viajar na hipnose de assistir a um canal que não entendemos nada do que está sendo dito. Cabe ao receptor. Releia tudo o que já foi dito. Realmente importa?
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