Sinopse: Em “Tempo de Matar”, a cidade de Canton, no Mississipi, se torna um barril de pólvora quando um advogado destemido e sua assistente defendem um negro vingativo que matou o assassino branco de sua filha, incitando uma revolta de grupos racistas locais.
Direção: Joel Schumacher
Título Original: A Time do Kill (1996)
Gênero: Crime | Tribunal | Drama
Duração: 2h 29min
País: EUA
O Tempo é Outro
A plataforma de streaming Petra Belas Artes à La Carte segue selecionando filmes de todas as épocas, com novidades semanais em seu catálogo. A Apostila de Cinema foi convidada a revisitar uma obra muito importante na minha formação pessoal – coincidentemente perto de virar mais uma página ao completar (junto com o site) mais um ano de vida. Como Roberta Mathias não acredita em coincidências, aceito o desafio de misturar a relação como indivíduo e crítico com uma análise mais justa de “Tempo de Matar“, longa-metragem de Joel Schumacher que adapta o primeiro romance de sucesso do autor norte-americano John Grisham.
O advogado e escritor já havia inaugurado um filão em Hollywood em 1996, quando o filme foi lançado. Ele, que com 34 anos (não-coincidentemente a minha idade) conseguiu que uma editora imprimisse cinco mil cópias do seu livro em 1989, se tornou um fenômeno editorial na década seguinte. Três transposições para o cinema de seus escritos já haviam sido lançados, todos refletindo o mesmo sucesso: “A Firma” (1993), “O Dossiê Pelicano” (1993) e “O Cliente” (1996). Esse último reuniu o cineasta com o roteirista Akiva Goldsman – com quem Schumacher repetiria não só nas obras de Grisham, mas nas duas produções de Batman que liderou (“Batman Eternamente“, de 1995 e “Batman e Robin”, de 1997).
Não à toa Goldsman também adaptaria as duas primeiras aventuras de Robert Langdon para as telas, em “O Código da Vinci” (2006) e “Anjos e Demônios” (2009). Ainda venceria o Oscar de roteiro adaptado por “Uma Mente Brilhante” (2001), grande vencedor daquela noite e inspirado no livro de Sylvia Nasar. Ele consegue manter certa fidelidade com o esqueleto narrativo de tramas complexas, tornando o longa-metragem satisfatório para quem admira o material original e permitindo que o diretor tenha as rédeas de uma boa história. São “fenômenos” que refletem tendências culturais da época. Não apenas John Grisham e Dan Brown, mencionamos também Tom Clancy em nossa recente crítica de “Sem Remorso“.
Mas, por que “Tempo de Matar” precisa ser repensando, até por quem lembra com carinho tanto do livro quanto do filme? Porque esse “tempo” não existe mais. Talvez não devessem ter existido – ou para um olhar crítico desde aquela época já soasse anacrônico. Isso não invalida o fato da obra abrir caminho para o diálogo sobre o racismo estrutural na sociedade norte-americana – hoje flagrantemente limitado pelo olhar de um advogado branco e privilegiado. Por trás do case de sucesso de Grisham, que romantiza em sua origem as negativas de editoras, está um profissional que antes dos 40 já havia vendido milhões e milhões de cópias e vendido direito de todas elas para a Warner.
Aqui, contudo, entra a relação pessoal com o produção estrelada por um Matthew McConaughey em início de carreira. Instado a deixar de lado o Jornalismo e a crítica de Cinema e focar no Direito quando era um adolescente no início da década seguinte (a 00), uma das primeiras experiências que comungaram o ambiente acadêmico da futura profissão com o audiovisual foi justamente esse filme. Usando a retórica argumentativa de Jake Brigance, advogado que defende da acusação de homicídio Carl Lee (Samuel L. Jackson, indicado ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante pelo trabalho), vi algo além da famosa cena final. Vi um Joel Schumacher que usa este trunfo para fazer do longa-metragem algo parecido com o ritmo de um processo desta natureza.
O prólogo traz o crime original. Dois supremacistas brancos, ostentando com orgulho adesivos no carro com a bandeira dos Confederados, sequestram, estupram e matam a filha de dez anos de Carl Lee. O que parecia nos levar ao julgamento deles, se transforma no caso de suas mortes quando o pai da menina invade o tribunal no dia da audiência de custódia e, em um rompante de raiva, abre fogo contra eles e um policial interpretado por Chris Cooper. Não há mistério quanto à autoria, materialidade e nem mesmo à motivação do que será levado ao júri. O que está em jogo é o debate sobre o justiçamento e a insanidade temporária de um homem que tem todo o sistema contra ele e sabe que a punição aos monstros que fizeram tudo aquilo com sua filha não lhe dará a sensação de Justiça.
Falando em monstro, vinte e cinco anos depois (em outras palavras, agora), chega à Netfix o filme “Monstro“, de gênero e linguagem parecidos com “Tempo de Matar”. Aqui está o grande anacronismo da obra de Schumacher, Grisham e Goldsman. Por mais que o escritor tenha feito fama em uma série de romances que projetam a figura de um advogado que é o que ele, no curso de Direito, imaginaria ser; revistar essas representações potencializam a ideia que a figura danosa do white savior traz. Jake tem a inafastável característica de homem branco, que ele usa como qualificação. Ao mesmo tempo que não invalida sua missão profissional de ser o representante de seu cliente, ser a voz de Carl Lee perante a Corte. A sociedade avançou (e muito) no olhar sobre as mensagens que chegam junto com narrativas desta natureza. Curiosamente, as críticas da época reclamavam mais da conclusão da obra do que sua representação – tanto que Paul Newman não aceitou trabalhar no filme pela “mensagem que passava”.
Enquanto filme, o ritmo e a linguagem própria dos anos 1990 até hoje se mostra eficiente. A montagem da canção gospel que antecede a vingança de Carl Lee é uma sequência bem executada. Por outro lado, a tentativa de criar uma tensão sexual entre Jake e Roark (Sandra Bullock), que viaja para a cidade de Canton para ser assistente no julgamento do advogado – casado com Carla (Ashley Judd) é deslocada, desproposital. É possível que o próprio Goldsman, entendendo que não seria possível nas já cansativas duas horas e meia trazer as crises (tanto de relacionamento quanto de personalidade) do protagonista, evitasse essa besteira se pudesse revisar o roteiro atualmente.
Relembre a sequência do tribunal:
“Tempo de Matar” conta com um elenco de enorme talento. Além dos já citados, as participações de Donald e Kiefer Sutherland, Oliver Platt, além do antagonismo de Kevin Spacey como o promotor Rufus Buckley, é um importante registro de como os projetos envolvendo as obras de Grisham atraíam os grandes nomes da época. Basta olhar que as outras produções já citadas contaram com Tom Cruise, Juia Roberts, Denzel Washington, Tommy Lee Jones, dentre outros. O escritor é daqueles que ajudaram a moldar os anos 1990. Mas, suas narrativas já começaram a soar anacrônicas logo depois. Tanto que, após “O Homem que Fazia Chover” (1997), seu único sucesso no cinema foi “O Júri” (2003).
O idealismo e a utopia de reverter uma situação em um discurso parece dar uma aura mágica à figura do advogado. Por mais que o Estado do Mississipi pareça inconciliável, com os grupos de supremacistas brancos ainda presentes na sociedade, Jake é movido por um espírito conciliador. Caso a obra desperte interesse, fica a sugestão de emendar a sessão com “Mississipi em Chamas” (1988), de Alan Parker – no momento disponível no Amazon Prime Video. Uma abordagem menos romantizada e mais próxima do presente, em que o racismo em todas as estruturas – principalmente a jurídico-prisional – permanecem.
Voltando ao passado de espectador do longa-metragem, há aspectos que seguem envolvendo nesta revisitação. Roark é sua pesquisa para desautorizar as testemunhas de acusação do corpo técnico, no velho jogo de cartas marcadas da promotoria, é um deles. O exercício de retórica do protagonista, em uma das grandes cenas da carreira de Matthew McConaughey, ainda é capaz de tocar alguns. Soa inocente dizer que, depois daquela aula de Teoria do Direito, em que a argumentação jurídica sobre a busca da verdade foi ilustrada com a primeira vez em que assisti o filme de Joel Schumacher, tomou uma grande proporção. Mergulhei nos livros de John Grisham, criei a mesma relação de imaginar naqueles advogados que revertem causas perdidas e são capazes de grandes feitos. Tornei quase um remédio para a frustração da vida real. Na prática, toda as ideias e boas intenções parecem ainda mais ficcionais.
Ultrapassado tanto tempo, meu retorno a “Tempo de Matar” trouxe duas grandes sensações. A primeira é aproveitar, com um olhar bem mais experiente, a maneira como Joel Schumacher faz da meia hora final um arco próprio para o grande acontecimento: o discurso de Jake. A segunda é atestar o anacronismo, baseado nas próprias vivências, no respeito ao lugar de fala e na sentença de que a obra não merece ser tão celebrada porque ela limita certas representações. Mas, como advogado por princípio, preciso dosar esta punição. Por mais que a estrutura atrás da obra não reflita a realidade, ela ainda é capaz de fazer pensar. Nem todos se desconstruíram, tanto que as tensões sociais permanecem. Por mais que John Grisham não tenha a força universalista que imaginávamos nos anos 1990, ainda me parece capaz de servir de carapuça para quem precisa entender o seu próprio racismo.
Veja o Trailer de Tempo de Matar:
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