Sinopse: Em um cinema abandonado, mas habitado pelos vestígios dos seus tempos de glória, desfilam histórias e memórias – algumas verdadeiras, outras tantas falsas, todas elas inventadas – acerca do fascínio despertado pela imagem em movimento e pelo espaço das antigas salas de rua.
Direção: Tiago Monteiro
Título Original: Tempo de Projeção (2014)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 19min
País: Brasil
Poeira Mágica
Sempre que possível, reiteramos aqui a Apostila de Cinema nosso apreço por um dos caminhos plurais que o audiovisual brasileiro encontrou nos últimos anos. Não apenas as possibilidades que a representatividade na produção permite. Devemos apontar também a transposição de uma leitura academicista, com a materialização em conteúdo imagético de premissas que surgem como projetos de pesquisa (em todos os níveis educacionais). Isso pode ser decorrente de uma aula ou um curso inteiro. “Tempo de Projeção” nasce de um trabalho no âmbito da academia de um curso de graduação (como bem explicou o diretor e professor Tiago Monteiro em sua entrevista, que deixamos em vídeo e áudio ao final do texto). Com isso, as manifestações que assistimos tiveram uma pré-produção quase laboratorial, com escolhas de abordagem que fizeram dessa obra uma das mais universalistas na programação da Mostra Cinemas do Brasil.
Isto porque estamos falando de um documentário que vai a campo com recortes bem delineados. Afasta a ideia de refletir um espaço e usa duas salas da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro, como templo paradigmático e não objeto que se esgota em si mesmo. Como se feito para uma aula sobre os princípios da linguagem documental, o longa-metragem se vale de alguns depoimentos de atores – no jogo de cena que a cinematografia brasileira tanto admira. Não quer se tornar um debruçar de histórias contadas, fazendo as trocas de experiências de maneira fluida, em uma montagem que não isola seus personagens, encontrando conexões naturais entre as falas.
Além do mérito, há também uma ideia ali de compartilhar o amor pelo cinema encarada pelos próprios agentes. Por mais que a tecnologia nos faça viver sem aquele espaço, a magia da nossa sala favorita e a expectativa pelo escuro que antecede aquele filme que nos tirou de casa, dificilmente deixarão de existir em nosso imaginário. Por mais que a ausência de deslocamentos e o esgotamento de compromissos (antes tão fundamentais), tenham feito de 2020 um ano em que consumimos mais cinema, passamos o ano longe daquele lugar, daquela poeira mágica que encantou o cineasta de “Tempo de Projeção” quando adolescente. Entretanto, não dá para fugir da ansiedade do dia em que poderemos reencontrá-la.
O documentário, então, além do universalismo provocado pela troca de vivências não vinculadas a um território se atualizou nas possibilidades que esse festival nos trouxe – apesar da professora Talitha Ferraz (também entrevistada na cobertura da Mostra) trazer um pouco da historiografia dos cinemas do Rio de Janeiro. Faz o espectador revisitar as suas lembranças, que começam a ficar também empoeiradas. Ao mesmo tempo, amplia o temor de que talvez não reencontremos alguns daqueles espaços. Ao olhar para trás e tratar de uma das mortes das inúmeras vidas que o cinema já perdeu nos últimos 125 anos, deixa o público pensativo sobre o que virá mais adiante.
Um prólogo poético, que traz a destruição e o abandono de salas não identificadas (assim como as pessoas). Monteiro não individualiza porque não há ali falas e nem cenários que não consigamos tomar para nós mesmos. O funcionário antigo relembra o auge da popularidade da rede de exibição da Baixada Fluminense, que vendia cinco vezes mais ingressos dos filmes de Mazzaropi do que a zona sul carioca. O ator Carlos Mossy surge como representante dessa vinculação da produção nacional com diversão para as massas – algo, infelizmente, cada vez mais distante. O cinema como espaço deixou de ser tão popular, mas o audiovisual nunca deixou de ser o grande entretenimento brasileiro – que já trocou a poltrona pelo sofá de casa desde a década de 1980.
Com isso, a elitização e a higienização daquele território avançou, mesmo que lentamente. Quando percebemos, o som da pipoca mastigada nos incomoda. A luz do celular, quase tão inconveniente quanto a de um lanterninha, é capaz de gerar uma crise sem precedentes. Quando percebemos, passamos um ano sem frequentar uma sala. Há quem passe a vida sem ir. No futuro, haverá aqueles que, mesmo com privilégios de classe, não se interessem em largar o bingwatching de uma das dezenas de séries dentro daquele Universo que sequer chamaremos mamis de cinematográfico. Há milhares de cidades que sequer têm um espaço que se assemelha a um cinema O processo de digitalização pôs fim ao quase tudo o que restava que não está dentro de shoppings, templos do consumo que passam filmes geralmente tão descartáveis quanto todas as experiências de quem se desloca até ali. Será que um dia até deles sentiremos falta?
O documentário, então, se encerra quase como uma terapia de grupo – quase como se a certeza de que a paixão pelo cinema nunca deixará de existir. Adailton Medeiros, idealizador do Ponto Cine e que já apareceu aqui no curta-metragem “Arroz, Feijão e Cinema” é a prova de que há chance de resgatar. Mas, fica a dúvida se o sorriso que surge de imediato na expressão da memória daqueles entrevistados é lembrança de um tempo bom ou se há uma idealização de um passado que não existe porque foi abandonado às traças. Numa sociedade ditada pelo consumo, novos “Tempo de Projeção” surgirão e o momento em que vivemos será a peça-chave para compreendê-lo.
Assista a uma entrevista com o diretor Tiago Monteiro, convidado do Apostila Convida #012:
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