Nos curtas-metragens premiados, aqui batizados de “Trilogia de Miguel Antunes Ramos”, o diretor já demonstrava uma preocupação urbanística com a cidade de São Paulo.
A questão do estufamento urbano e suas consequências são trabalhadas de distintas maneiras, mas em todos os filmes podemos ver traços do longa em desenvolvimento. Até mesmo em sua ficção, “A Era de Ouro”, o mercado imobiliário aparece como central para o desenvolvimento da trama.
Ramos trata de questões como : a quantidade de carros rodando pela cidade, a agressividade do mercado imobiliário e o isolamento provocado pelos grandes condomínios. Todas essas questões que preocupam urbanistas do mundo inteiro quando tratamos de megalópoles , como é o caso de São Paulo, ou grande cidades.
É interessante ver o crescimento rápido do diretor ao abordar essas questões e a costura que elabora em cada um dos filmes que ,apesar da pouca diferença de tempo em suas execuções, revelam novas facetas do diretor.
Não sem motivo, todos eles passaram por e ganharam prêmios em importantes Festivais Nacionais.
A Temporalidade do Temporário
No curta-metragem “E”(2014) de estacionamento, como nas placas de trânsito, Moraes acompanha a criação dos terrenos utilizados para estacionamento na cidade de São Paulo. Ao utilizar a técnica do Google Maps nos coloca junto a ele descobrindo os espaços enquanto observamos a verticalização da cidade.
Com essa abordagem, o diretor traz não somente o problema de uma temporalidade efêmera desses espaços, mas também o questionamento do que estava ali anteriormente e do que será implementado. Questionamentos que sustentarão seu posterior longa “Banco Imobiliário“.
Tendo como origem diversos tipos de terreno, os estacionamentos se sustentam pela quantidade de carros que circulam diariamente na cidade e pela fácil implementação do negócio. A aproximação dos diretores com entrevistados é também desde o início fina, fazendo com que não haja um retraimento por parte de quem explora esse mercado ou mesmo de quem resolve abrir sua casa para mostrar o estacionamento.
Esse último exemplo, aliás, sintetiza tudo o que o filme quer dizer e vai um pouco além. A necessidade de exclusividade como oposto a uma coletividade ( ou seja, a vida em conjunto com a sociedade) é tanta que estacionamentos pessoas, dentro do próprio apartamento dos donos são criados.
Assim, o filme começa na rua e termina dentro de um condomínio de luxo com barulho de obras e alarmes de carros. Sons que estamos acostumados a escutar em nosso cotidiano caótico.
Prêmios: Melhor filme na Mostra de Tiradentes e no Festival É Tudo Verdade
Idade Média
O filme “A Era de Ouro”(2014) é a experimentação de Miguel Antunes Ramos na direção de uma ficção. Ao lado de Leonardo Mouramateus, o segundo filme da Trilogia de Miguel Antunes Ramos traz ainda uma preocupação com os caminhos urbanísticos os quais a maior cidade do Brasil vem criando.
Assim, nos corpos de dois migrantes, Simone (Ana Luiza Rios) e David (Edivaldo Batista), contam uma história que tem como base a migração já histórica de nordestinos para a cidades das oportunidades.
Aqui ambos são mais irônicos ao trazer à tona toda deterioração moral que pode acompanhar o crescimento da cidade e das carreiras que têm no setor imobiliário sua grande alavanca.
Sem pudor algum vemos personagens dissertarem sobre suas estratégias e maneiras de convencimento tratando os espaços e as pessoas que nele estão como números e cédulas.
Simone, já há dois anos no ramo, finge uma cegueira( que ao final, mostra-se mesmo como máscara), enquanto seu ex-namorado , David não suporta nada do que veem seus olhos e escutam seus ouvidos. As fundamentações éticas sobre as escolhas que cada uma das personagens faz mostram que somos humanos. O julgamento de David não é mais brando com Simone, mas talvez ele consiga compreender as escolhas da ex-companheira ao perceber que é preciso endurecer na cidade de concreto.
Afinal, “é foda quando faz frio, mas é muito pior quando faz calor”, a própria Simone admite.
Prêmio: Melhor montagem no Janela Internacional de Cinema de Recife
Cada Tempo tem Seu Castelo
Com um intrigante nome, “O Castelo”(2015), Miguel volta ao gênero documental ao tratar de um empreendimento que causou certa comoção na época de sua elaboração. Trata-se da construção de um imenso complexo comercial e residencial nas margens do Rio Pinheiros. Com um alto muro e proteção integrada, o complexo torna-se um verdadeiro castelo, não somente em sua estrutura( que algumas vezes chega mesmo a lembrar uma arquitetura renascentista renovada ,mas em seu isolamento estrutural e simbólico.
A construção não é a única desse tipo na cidade de São Paulo, mas chama atenção pela localização. Ainda assim, o que fica mais evidente é uma necessidade de isolamento cada vez maior com complexos que possuem mini-shopping, piscina, restaurantes, academias, funcionários. Ou seja, você só saí de casa para trabalhar e, às vezes, nem isso.
Dessa forma, o conhecimento da cidade se torna cada vez mais expertise de quem precisa rodar por ela, transitar, viver, habitar. Ou seja, em geral, os mais pobres.
Com esse não enfrentamento da realidade que os cerca, cada castelo traz aos seus reis e suas realezas uma falsa impressão de segurança que qualquer pessoa que passe pela cerca automática sabe não existe.
“O Castelo” poderia ser a sala de Buñuel em “O Anjo Exterminador”(1962) e, de certa forma, o é.
Agora, resta saber o que todos farão quando tiverem que sair da sala.
Prêmio: Itamaraty no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo
Assim como finalizo esse texto sobre a “Trilogia de Miguel Antunes Ramos” com uma indagação, o próprio parece fazer isso em cada um dos filmes.
O que será da urbanização da maior cidade do país? Até quando esse modelo se sustentará? Será que haverá um momento de revolta?
Essas respostas parecem estar cada vez mais próximas não por uma consciência coletiva, mas por um esgarçamento. Nossa saída é pensar na reestruturação, quando possível.
Ficha Técnica da Sessão Trilogia de Miguel Antunes Ramos
E (Miguel Antunes Ramos, Alexandre Leco Wahrhaftig, Helena Ungaretti, 17′ – Brasil, 2014)
Sinopse: Estacionamento. Es-ta-cio-na-men-to. Do latim, statio. Ficar de pé, ficar parado.
A Era de Ouro (Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, 21′ – Brasil, 2014)
Sinopse: “Ontem, tarde da noite, fui ao jardim, ver se nosso teatro ainda estava de pé. E ele está lá até hoje.”
O Castelo (Miguel Antunes Ramos, Guilherme Giufrida, Alexandre Leco Wahrhaftig e Helena Ungaretti, 9′ – Brasil, 2015)
Sinopse: Devidamente fortificado, um castelo de luxo à beira do rio Pinheiros.
Roberta Mathias
Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.