Sinopse: A Venezuela cada vez mais parece ocupar no imaginário mundial um lugar de espelho ou de miragem: cada pessoa enxerga nela o que deseja projetar, num gesto que reflete mais a si mesmo do que o que quer o país possa mesmo ser. Ciente de que não será capaz de mudar isso, nem muito menos explicar ou condensar uma situação tão complexa, “Um Céu Tão Nublado” aposta em não generalizar. Experimentamos nele algumas Venezuelas possíveis, acompanhando uma série de personagens que vagam por suas fronteiras e estradas, cada um vivendo somente um pequeno pedaço dessa vida coletiva que parece escapar à compreensão.
Direção: Álvaro F. Pulpeiro
Título Original: Un Cielo tan Turbio (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 23min
País: Colômbia | Espanha | Reino Unido
Múltiplas Frequências
Há algumas formas de sermos considerados apátridas. Geralmente, acontece em ficções jurídicas relacionadas a aspectos pessoais. Cidadanias negadas pelo não cumprimento de requisito em nenhuma das nações nas quais possuímos vínculos territoriais e de ancestralidade. Quando essa desvinculação direta com elementos culturais é menos protocolar, importa-se a expressão de origem indiana pária, de conotação racista que vincula o indivíduo a um status de impureza.
O documentário “Um Céu tão Nublado” mostra que essas leituras não são tão simples assim. O filme que o cineasta Álvaro F. Pulpeiro apresenta na mostra competitiva do 10º Olhar de Cinema usa a estrutura globalizada de disseminação de informações à luz das fronteiras mais estremecidas dos últimos anos na América Latina: da Venezuela com Colômbia e Brasil. Ou, pelo menos, deveria ser assim.
Em conversa com Carla Italiano para o canal oficial do festival no YouTube – e que você assiste ao final desse texto – o diretor disse que o projeto da obra parte de “Nostromo“, livro de Joseph Conrad. Partindo da fictícia Costaguana, o autor faz uma alegoria política sobre uma revolução popular sul-americana interrompida por um golpe militar, em um texto dos primeiros anos do século XX que soa profético, mas apenas revela a sensibilidade do inglês em relação às transformações do mundo moderno.
Entretanto, Pulpeiro carrega consigo uma identidade cultural de múltiplas frequências. Divide seu tempo entre a Inglaterra e a Colômbia, porém sua infância e adolescência tiveram fases na Suíça, Espanha, no Norte do Brasil e na Austrália. Ou seja, um cidadão acostumado com um ciclo de novos reconhecimentos e pertencimentos e que nasce enquanto artista pronto para colocar esse aspecto como centro de suas criações.
Veja o Trailer:
Sendo assim, “Um Céu tão Nublado” começa nessa tentativa de encontrar o que seria mais próximo da Costaguana de Conrad na contemporaneidade. Em meio a uma crise econômica de inflação avassaladora, potencializada pela tensão política da autoproclamação de Presidência por Juan Guaidó em dezembro de 2019, a Venezuela parecia promissora nessa busca. Vivendo o risco de uma guerra civil, com dois governos antagônicos se declarando legítimos, as fronteiras do país eram monitoradas pelo Presidente dos Estados Unidos Donald Trump. A Colômbia e o Brasil, aliados dos norte-americanos, se prontificaram a proteger seus domínios e garantir que Guaidó governasse com o apoio das nações vizinhas.
Porém, ao chegar naqueles espaços, o cineasta encontra uma comunidade que precisa continuar existindo. Sobreviver consuetudinariamente. Adaptado ao contexto político, claro, mas por convenções sociais que não aplicam apenas as ficcionalidades do que chamamos de Estado. Como ele diz na entrevista, o longa-metragem é político, mas não é militante. É uma obra de observação, que liga sua câmera nos momentos em que o sol nasce e se põe. Esses são os ideais para compreender os cidadãos que, de fato, constroem um país com suas mãos.
Há uma rotina que não pode parar, por conta das necessidades básicas. Talvez princípios ideológicos sejam mitigados em prol da manutenção da vida. Sem compreender muito bem sob a égide do que (e de quem) aquele território se coloca, as informações que o filme nos traz são sempre dentro do veículo do protagonista. Uma rádio com suas múltiplas frequências e idiomas, que se contradiz e leva a crer que o grande vilão de qualquer forma de governo é promover populismo para maquiar os desmandos da elite. Essa, por sua vez, sempre apostou na perpetuação de crises na América Latina enquanto projeto de ampliação de seus lucros.
“Um Céu tão Nublado” é um ótimo complemento para a visão de Anabel Rodríguez Ríos em “Era uma Vez na Venezuela” (2020). Ali ela revisita um momento-chave na ruptura democrática com nomes, datas e locais. Aqui estamos um pouco mais a frente na linha do tempo e simulando as consequências da perda de identidade política tanto nos espaços fronteiriços quanto nas plataformas petrolíferas. Em meio ao agravamento do desabastecimento, são esses os locais mais tensos e o que ainda faz as pessoas se entenderem é o que elas criaram para si enquanto cultura. Isso vai muito além do conceito de nação.
Sem poder usufruir das sete camadas de som construídas por Pulpeiro e pelo experiente Tomas Blazukas (de produções de grandes estúdios, como o inédito “Casa Gucci” de Ridley Scott), o longa-metragem é daqueles que lamentamos uns pontinhos a mais não testemunhar em uma sala de cinema. Nas múltiplas frequências criadas pelo diretor, a lembrança do termo pós-capitalismo pela ótica de Hugo Chávez é abordado em uma das falas. Fica para o futuro a discussão sobre um conflito que não acontece no continente nos últimos vinte anos: a busca por uma melhor distribuição de direitos, deveres e renda sendo chamada de comunismo, para que a resistência tome o poder com proposta de precarização do trabalhador sob a desculpa de competitividade sendo chamada de fascismo. Como se não houvessem camadas nessa realidade dolby digital das complexas relações humanas.
“Um Céu tão Nublado” ajuda a mostrar que, enquanto nos grandes centros se debate rupturas ou transições, revoluções ou golpes, no coração das trevas a urgência dos problemas faz muita gente ignorar qualquer construção social sobre Estado ou nação.
Assista à conversa entre Carla Italiano e Álvaro F. Pulpeiro sobre “Um Céu tão Nublado”: