Um Lugar para Todo Mundo

Um Lugar para Todo Mundo Documentário Crítica Poster

Sinopse: Quando Emílio, uma criança de 3 anos, está prestes a ingressar na escola, sua família se depara com as barreiras do sistema educacional que mais discrimina nos Estados Unidos: as escolas públicas da cidade de Nova York. Na luta para garantir o direito de Emílio à uma educação inclusiva, eles investigam histórias pessoais e inspiradoras que denunciam muitas injustiças. Dados do Unicef revelam que existem mais de 93 milhões de crianças com deficiência em todo o mundo – quase metade delas não frequenta uma escola. A outra metade está na luta pelo direito de frequentar uma escola que não as discrimina e as separa das demais crianças. “Um Lugar Para Todo Mundo” revela que o caminho para uma sociedade inclusiva começa pela garantia de uma escola para todas as crianças, um direito delas.
Direção: Olivier Bernier
Título Original: Forget Me Not (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 40min
País: EUA

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Um Lugar Ainda em Construção

Determinado momento do documentário “Um Lugar para Todo Mundo” parece revelar um ponto de virada na trajetória de Hilda Bernier, mãe de Emilio. Acontece quando, depois que o espectador acompanha os primeiros anos da vida de seu filho Emilio, uma pergunta sua é repassada a uma autoridade da política educacional do Estado de Nova Iorque. Ela aparece apenas anotando alguma coisa relacionada à resposta, mas parece que ser ouvida naquele espaço tem um peso maior. Por consequência, lhe dá forças para reforçar seu desejo de luta. A vitória de Hilda e Emilio é a vitória da dignidade da pessoa humana, princípio basilar de qualquer dinâmica social em qualquer tempo.

Após première no Human Rights Film Festival, o filme será exibido às 23:59 do dia 20 de setembro no GNT (e também na programação da TV Cultura) e fica disponível no dia seguinte, reconhecido como Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, nas plataformas GloboPlay e Videocamp.

Porém, por mais que ultrapassemos quase oito décadas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quase seis dos movimentos de lutas pelos direitos civis e perto de três da edição da lei que federaliza as políticas públicas de educação inclusiva da Era Clinton, os pais de crianças com Síndrome de Down, autismo ou qualquer indivíduo com algum tipo de deficiência, não consegue matricular seus filhos em escolas ditas regulares. Há uma resistência e Nova Iorque parece ser a capital. Não das oportunidades, mas da opressão. Em outra passagem do longa-metragem, um dos inúmeros profissionais que auxiliam e aconselham Hilda estenderá esse esmagamento a boa parte das comunidades não-brancas e de classes sociais menos abastadas. A terra das liberdades, como decantamos em verso e prosa em outros textos por aqui, é uma falácia meritocrática e a obra do diretor Olivier Bernier, pai de Emilio, escancara ainda mais tudo isso. Por isso que a vitória de seu filho é extensível a todas as pessoas.

O próprio cineasta relaciona sua obra com “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” (2020), indicado ao Oscar de melhor documentário e que Roberta Mathias muito bem tracionou as questões envolvendo o descapacitismo. Numa fase em que a luta por direitos ganhou corpo – e a partir de todos os tipos de corpos – demorou muito para que se chegasse na educação inclusiva. Nas falas da lei já mencionada, termos ainda da década de 1960 são resgatados trinta anos depois. Apenas em 1990, a lei de 75 denominada de Lei de Educação para Todas as Crianças Incapacitadas foi renomeada para Educação para Crianças com Deficiência. Uma grande revisão desta norma se deu em 2004 até que, três anos depois, o Presidente George W. Bush assinou a regulamentação conhecida como NCLB (No Child Left Behind, ou “nenhuma criança deixara para trás”), encerrado aqui o histórico de avanços no ordenamento jurídico do país.

Porém, mais trinta anos se passaram e a mão de Emílio não consegue aplicar essa política normatizada na teoria. O Estado cria armadilhas burocráticas para inviabilizar o exercício desses direitos. O cineasta, então, equilibra bem as representações. Não exagera na construção empática, é sintético na abordagem inicial. Nela, o espectador transita do parto de Hilda – e da primeira vez que o médico ventila a possibilidade do menino ter Síndrome de Down – até o aniversário de três anos de Emílio, em flashes.

Chegando na idade pré-escolar, os pais se deparam com um desafio que não imaginavam ser tão difícil. Matrículas negadas, análises nunca completadas e tudo caminhando para duas opções: ou o ensino especial (leia-se: segregado) ou o homeschooling. Aqui no Brasil, desde a lei 4.024/61, a oferta de educação para pessoas com necessidades especiais surge no horizonte (ainda atravessada, nos artigos 88 e 89 com o título “educação de excepcionais”), Um longo histórico de sessenta anos (e mudanças de entendimentos e nomenclaturas) que, atualmente, se encontra amparada pelo Decreto 10.502/20 com a Política Nacional de Educação Especial. Ela é vista como um retrocesso para a educação inclusiva, gerando uma nota de repúdio da comunidade científica vinculada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).

Sabemos que isso impacta diretamente em uma rede da sociedade, que vai da falta de informação dos familiares e dos colegas de escola à formação pedagógica dos professores. Não se muda o sistema de uma hora para outra, mas criar desculpas para não promover nenhuma mudança também não nos serve mais. Em “Um Lugar para Todo Mundo” conhecemos também Kim Williams, mãe de Wesley, que denuncia os maus-tratos de instituições que aplicam a segregação sem que os responsáveis saibam. A resistência à inclusão não é apenas na sala de aula, se estende aos ambientes sociais e recreativos dos colégios. Um crime não apenas por ser contrário à lei, mas porque é carregado de desumanidade.

Humano, entretanto, é o filme, que mitiga o empilhamento de dados e mostra as histórias de Emilio e Wesley. Quando os números surgem, a prova de que a política de inclusão dá certo, seja na expectativa de vida que quase dobrou, seja na forma como se formam gerações cada vez mais propensas a respeitar as individualidades e construir uma sociedade mais tolerante. Os beneficiários não são apenas um grupo e sim toda a coletividade. Mas, o Estado sempre estará ali para atrapalhar. No documentário, o exemplo é norte-americano. Todavia, aos reflexos das ideologias do governo anterior de Donald Trump, reverbera-se até hoje alguns de seus aspectos no atual governo brasileiro.

Nos Estados Unidos de Emilio, não bastou os chamados interventores precoces (profissionais ligados à pedagogia, terapia ocupacional e até fonoaudiologia) auxiliarem no processo de adaptação. Também não se mostrou suficiente os professores atestarem que a convivência harmônica e saudável entre os alunos era um fato. A burocracia e o ranço eugenista de uma sociedade deseja se impor – e é muito importante o contraponto que Olivier nos fornece, mostrando como o conceito de “raça pura” foi importado do continente na primeira metade do século XX. Ao contrário de uma narrativa oficiosa, com a falsa ideia de que surgiu, se criou e morreu na Europa. Aqui no Brasil também temos a nossa cota de desumanidade pelo olhar eugenista, como tratamos em outras críticas de obras que lembram do embraquecimento da população como política estatal.

Há, ainda, outro grande desafio: o de manter o princípio da publicidade dos atos estatais, já que os representantes se negam e chegam a chantagear com ameaças de adiamentos de reuniões, caso elas fossem registradas para o filme. “Um Lugar para Todo Mundo” termina com um ar de denuncismo, em uma atitude inacreditável de quem deveria proteger os interesses dos cidadãos. Jogam aqueles que têm pressa para o caminho da judicialização, que sabemos que é lento. Serão os mesmos que tratarão os excepcionais casos de sucesso como regra e dirão que todo mundo pode fazer e ser o que quiser. Enquanto isso, nos seus escritórios, garantem que boa parte deles não tenha sequer uma chance.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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