Sinopse: O documentário revela a história de três irmãos, tendo como fio condutor a trajetória do mais novo, que viaja para Londres em 1969, enviado pela família para que não participasse da luta armada contra a ditadura no Brasil, seguindo os passos da irmã, que acabou tornando-se presa política. Misturando depoimentos e memórias dos irmãos com nove anos passados no exterior pelo caçula, o filme detalha cartas e também entrevistas com ele, que chegou a ser internado em instituições psiquiátricas. Um relato triste e ao mesmo tempo bem humorado de um núcleo familiar e suas convicções.
Direção: Lucia Murat
Título Original: Uma Longa Viagem (2011)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 35min
País: Brasil
O Velho Brasil de Sempre
Revisitar uma obra dez anos após sua estreia é um dos exercícios mais difíceis de releitura. O primeiro desafio é tentar mitigar a sensação de que, ora, não faz tanto tempo assim. Algo que gera um impacto anacrônico ao texto que tira sua força junto a quem, por exemplo, era uma criança de oito anos em 2011 e hoje é um adulto, já no mercado de trabalho ou iniciando seus estudos universitários. Para eles, talvez “Uma Longa Viagem” seja algo mais próximo de um Brasil paralelo do que um documentário sobre um passado, o da ditadura militar, que hoje soa menos distante do que aquele, do auge da Era PT, no qual Lucia Murat produziu o longa-metragem.
Na 39ª edição do Festival de Cinema de Gramado, onde debutou, o filme saiu vencedor na categoria principal e no prêmio do público, além dos troféus dados pela atuação de Caio Blat e pela direção de arte de Mônica Costa e Julia Murat. Depois ainda foi exibido na Mostra SP e Festival do Rio de 2011. Lançado quase dois anos depois no circuito, recebeu em 2013 o Guarani de melhor documentário – o Grande Prêmio de Cinema foi para “Raul: O Início, O Fim e o Meio” (2012).
Chama logo a atenção a logomarca inicial da sessão, a da TV Brasil. Resultado da unificação de concessões de canais que reuniam conteúdo estatais, comandada pelo Ministro das Comunicações da época, Franklin Martins, hoje é sinônimo de ferramenta propagandista de um governo de direita, que não consegue agradar plenamente os liberais porque se alinha com a instrumentalização que o fascismo sempre fez. Diante disso, a necessidade de contextualização de um país que em 2011 parecia ser um e hoje tenta não ser outro já torna a experiência de “Uma Longa Viagem” diferente entre seus espectadores.
Para os mais velhos, a cineasta refaz os passos dela e do irmão Heitor quase como uma proposta de reflexão para aqueles que eram jovens no período do regime totalitário nas décadas de 1960 e 1970. Para os de meia-idade, como este que vos escreve, as correspondências do exilado nômade, que dá duas voltas na Terra entre 71 e 78 para fugir da prisão política, rememoram os relatos que o ensino de História trouxe. A luta dos defensores da ditadura – e de seu legado – avança sobre o sistema educacional porque é a partir dele que um fragmento de justiça havia sido feita.
Um país que não puniu seus torturadores e deu ao povo a ideia de que tudo o que aconteceu eram águas passadas só não repetiria seus erros caso as gerações seguintes tivessem plena consciência do que ocorreu. Hoje em muitas instituições (principalmente as privadas de classe média e alta, dependentes da satisfação dos pais clientes) um filme como “Uma Longa Viagem” talvez não fosse mais transmitido para os alunos.
Isso nos leva ao impacto no público mais jovem, aquele que mais precisa ter contato com a filmografia de Lucia Murat. Usando a própria experiência enquanto presa política, perseguida e torturada, como argumento de suas criações, ela se põe de forma generosa como objeto das suas obras. Abalada com a morte do outro irmão, o médico Miguel, ela e Heitor vão refazendo seus passos no período. Usando as performances dramáticas de Caio Blat, outro expediente tradicional de seus longas-metragens, a cineasta parece suprir algumas das histórias que ela não acompanhou porque foi arrancada do seio de sua família ao ter uma opinião diversa do governo instituído antidemocraticamente na época.
No processo, ela coloca as suas referências na mesa, em um mosaico de conexões não tão óbvias que vai de Angela Davis à Teologia da Libertação. O filme surge como uma boa porta de entrada para quem deseja conhecer seu trabalho. Na linearidade narrativa e no toque de aventura das constantes viagens de Heitor, o espectador vai sendo levado pela curiosidade dos passos seguintes – e envolve Portugal, Marrocos, Austrália, Irã, Nepal, dentre outros.
Há ainda alguns momentos traumáticos e de impacto na saúde de Heitor, já que o vício em entorpecentes o levou a alguns períodos de internação. Momento em que o personagem – nas palavras de suas cartas revividas por Blat – apresenta um poder de foco e um esforço positivo que o ajudou nesta outra luta pessoal. Por mais que sua irmã não dividisse tanto com ele a filosofia beatnik e vivesse tempos de resignação com sua liberdade tolhida, os vínculos afetivos tornaram a relação ainda forte mesmo à distância.
Lucia Murat não nega sua origem e as consequências de fazer parte de uma realidade carregada de privilégios. Sempre procura colocar em suas falas, diretas ou indiretas em “Uma Longa Viagem” o quanto poderia ser diferente caso o suporte não fosse o mesmo. Reconstituindo seu período de prisão pelo DOI-CODI, sentada naquele espaço com seu álbum de fotografias, parece mesmo um Brasil paralelo. Difícil fazer o jovem de dezoito anos acreditar que existiu um tempo em que o Estado incentivava pessoas como ela a contar suas histórias.
Ficou apenas o medo de que novos diários de dor sejam escritos daqui para a frente, nesse roda viva imparável que nossa sociedade nunca deixou de ser.
Veja o Trailer: