Sinopse: As vidas negras importam neste filme poderoso sobre uma nova fundação do Oeste americano. Três diretoras belgas colaboram com Lashay T. Warren, um jovem esperançoso que se mudou com a namorada e os filhos de Los Angeles para California City, um projeto iniciado na década de 1960 no deserto de Mojave e ainda inacabado, que abriga menos de 15.000 pessoas hoje. Lashay trabalha varrendo ruas desertas, faz longas caminhadas até a escola para estudar sobre os colonos pioneiros e se filma em um diário ao longo de quase dois anos. A partir de um lugar descartado, contar histórias se torna uma maneira de escrever seu próprio nome no mundo.
Direção: Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere
Título Original: Victoria (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Bélgica
Destino Manifesto e Atualizado
“Victoria“, produção belga das cineastas Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere, foi o vencedor do prêmio Caligari no Festival de Berlim esse ano. Reservado aos filmes exibidos na Berlinale Forum e no Fórum Expandido, são obras que buscam uma estética particular para tratar de uma arte política, de teor social. Isso já bastaria para atrair nossa atenção para o longa-metragem, que – apesar de europeu – traz uma histórica tipicamente norte-americana. Uma lição sobre corpos periféricos que, ao transitarem por novos territórios, precisam refundar lugares e reimaginar suas vidas.
A obra acompanha Lashay e sua família. Eles, por circunstâncias econômicas, se mudam de Los Angeles para California City. Um espaço gestado para servir à especulação imobiliária – tal qual a Barra da Tijuca no Rio de Janeiro e outros lugares projetados – com a diferença é de que o mecenas que lá colocou dinheiro por volta dos anos 1960 viu seus planos naufragarem. O que restou foram algumas propriedades espaçadas em uma zona semiárida, com graves problemas de manutenção.
A fotografia do filme é marcada por essa paisagem desértica, com aqueles emaranhados de folhas que nos Estados Unidos é chamado de tumbleweed, mas que não necessariamente é uma bola de feno. As diretoras se valem de uma representação contemplativa para que possam aliar a narrativa da trajetória daquelas pessoas a partir do ano de 2016 e compor imagens naturalmente atraentes.
Localizações quase distópicas de um ideal de futuro que fracassou. As projeções sobre aquela empreitada abandonada refletem diretamente naqueles que chegam em Cal City nos últimos anos. “Victoria” traz uma família como exemplo, mas a sensação e os diálogos criados sobre ambientes cada vez mais inabitáveis, que fatalmente levará milhões de pessoas ao nomadismo (ou à clausura voluntária) é constante. Ao mesmo tempo, o filme não deixa de trazer ao seu centro o urgente debate sobre o racismo nos Estados Unidos. Em um período onde as demandas do Black Lives Matters ganha força – a partir de um antagonismo que motivaria até mesmo a mais preguiçosa das resistências – é curioso acompanhar aquele grupo saindo do olho do furacão de uma megalópole e partir para terras pouco exploradas.
Com isso, as cineastas atingem mais um equilíbrio no filme. Se já havia o de linguagem e o de representações, ele também é temático. Trança bem as ideias gerais e particulares ali em jogo. Com o auxílio do Google Maps, é possível acompanhar o retorno de Lashay aos espaços antes ocupados em LA. Assim como outras produções que se utilizam dessa ferramenta, a aproximação é fundamental para a leitura do território por parte do protagonista. Quase do saudosismo do satélite à distância, onde conseguimos enxergar em perspectiva, reduzindo interpretações de ruas ao seu nome oficial, chegamos à materialização do conturbado passado daqueles agentes. A lupa atinge seu mais alto grau com esquinas, calçadas e estabelecimentos identificáveis. Isso permite a individualização da narrativa. Determinado ponto da cidade, por exemplo, ficou marcando por ser onde o protagonista tomou seu “primeiro” tiro.
Nessa naturalidade de encarar o destino, Lashay conviveu com a racismo estrutural e seguiu adiante. Ele é vítima, testemunha e sobrevivente do sistema. Sendo assim, esse eixo temático ocupando o meio da projeção de “Victoria” nos mostra como, por maior que seja o deslocamento ou a busca por uma nova realidade, carregamos conosco o passado. Isso torna o terço final, de mergulho profundo na rotina da família, ainda mais bonito. Porque Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere migram novamente do particular para o geral e mostra um protagonista que, unindo busca por melhores condições e reparação histórica, propõe uma nova Marcha para o Oeste. Até porque os afro-americanos também fazem jus ao Destino Manifesto e querem ver os Estados Unidos que só eles sentem se tornar, de fato, uma grande nação.
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