Sinopse: Híbrido de documentário, ficção e ensaio poética-musical, “Você nos Queima” propõe um olhar sobre a presença do corpo em movimento – que conduz a imersão em fragmentos de uma possível narrativa de amor, ausência, desejo, relação com a vida urbana e com a natureza.
Direção: Caetano Gotardo
Título Original: Você nos Queima (2021)
Gênero: Documentário | Experimental
Duração: 1h 12min
País: Brasil
Todas as Danças
A mais recente produção de Filmes do Caixote, “Você nos Queima“, começa com um exercício narrativo de seu realizador Caetano Gotardo. Em dupla aparição nesta quinta edição do Festival Ecrã (ele também estrela “Desaprender a Dormir“, de Gustavo Vinagre), demoramos um pouco a intuir que o texto tem um ar de correspondência. O cineasta quer construir uma memória pelas palavras.
Chama a atenção a forma como ele faz isso. Primeiro, ele cria seu próprio universo expandido – propõe uma fotografia, duplicada e depois multiplicada. Segundo, porque ressalta nessas imagens o que as diferencia. Aponta os detalhes, o que há além do que seriam meras reproduções, distanciadas apenas no espaço-tempo. Procura o que as fazem únicas e no que, dentro delas, está fora do padrão. Um olhar contemporâneo de um cinema que não se prende às fórmulas e que tira o peso do virtuosismo quando ele não é essencial. Romper com essa lógica pode ser até uma tática.
No caso, o realizador captou as imagens ao longo de três anos pela câmera de um telefone celular da Samsung Galaxy S9 – e, como sabemos dentro da lógica mercadológica, este é o tempo de vida de um aparelho desta natureza, já que somos compelidos a abandoná-los por uma desatualização forçada dos modelos. Além disso, ele aplica no som parte do material de “Seus Ossos, Seus Olhos“, uma produção de 2019 – feita no período em que essas criações ganhavam forma, em um diálogo enquanto diário, de certa maneira – e de aproveitamento. Nas palavras, escritos do poeta Guilherme Gontijo Flores e de Luis Manuel Gaspar Cerqueira. Na música, a sempre bem-vinda voz de Romulo Fróes, que completou este ano cinquenta anos de carreira.
Neste expediente, criações de pessoas tão ousadas e criativas quanto Caetano chega a palcos como o Ecrã. “Você nos Queima” dificilmente será a obra mais assistida do diretor, que já traz aos espaços que ocupa o peso de um nome. Uma sessão difícil, de desapego à narrativa. Começa no escuro, baseado em palavras. Ganha forma a partir de elementos naturais aproximados, principalmente rochas. Até que chega na cidade de São Paulo, através de sua malha metroviária. Nas reflexões que o filme nos permite, o uso do arquivo. Hoje tão comum, com festivais e editais direcionado a eles e trazendo ao vocabulário cinéfilo expressões como ressignificação de imagens, o exercício inicial de provocar seu próprio big-bang nos leva a essa visão sobre a ética e o simbolismo. Não apenas pelo que absorvemos e do que entendemos por arquivos de terceiros, mas pelas lacunas que precisamos suprir de uma conhecimento que não se encerra naquele conjunto disponível.
Gotardo também se coloca como objeto da obra. Sua criação – e não o conheço para dizer o grau de ficcionalidade imposto, o que também não é primordial para o espectador – é a de uma pessoa com medo da morte. Vagando do confinamento de seu apartamento ao mar de possibilidades que a maior metrópole do país, que nos convida ao anonimato. Dali em diante, “Você nos Queima” será uma espécie de balé de pernas. Captando imagens de passageiros do metrô da cintura para baixo, acompanhado de uma trilha noir, um outro exercício se forma. Após tirar o ranço padronizante em seu redemoinho de fotografias forjadas, o diretor nos convida a praticar a estereotipização.
Uma calça larga e um tênis All Star, uma guia usada por pessoas cegas, alguém sentado no chão enquanto lê. Boa parte das mentes dos receptores viajará e tentará conectar-se, de forma automática, ao que elas entendem como seres possíveis naqueles corpos em parte exibidos. Quando foca nas mãos, a câmera mostra a ansiedade, os toques insistentes, a dificuldade de equilíbrio. O transporte público é ritualístico, é sim um balé proletário – que já se tornou clássico. A montagem as intercala com a dança solitária de nossos apartamentos.
Assistido em sessão dupla com “Sombra” (2021) de João Pedro Faro, que traz outras maneiras de ocupação da cidade – sem o caráter transitório e até descartável das relações. A competitividade e o dinamismo de uma obra paulistana se opondo à contemplação e ao caos decadente da inquietude carioca. Gerações aliadas por um novo cinema, aquele que se consolida no sucesso de público de um evento como o Ecrã.
“Você nos Queima” é um recado de Caetano Gotardo, de que ele não fará concessões aos que esperam dele um futuro formulaico – como se as experimentações da arte coubessem em artigo de algum edital. Os anos passam, o audiovisual brasileiro morre e renasce, mas seus realizadores continuam mostrando que cinema é cachoeira.
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