Welcome to Chechnya

Welcome to Chechnya Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: O documentário nos leva para dentro do trabalho de um grupo clandestino de ativistas que enfrentam enormes riscos para resgatar vítimas LGBTQ da brutal campanha governamental da Chechênia. A república, que faz parte da federação russa, é um local onde a comunidade LGBTQ vive sob medo, ameaça de detenção, tortura e morte, ações que, na maioria das vezes, são cometidas pelas mãos das próprias autoridades.
Direção: David France
Título Original: Welcome to Chechnya (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 47min
País: EUA

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Negligência na Origem

Documentário de viés denunciativo, “Welcome to Chechnya” foi um dos grandes destaques dentre as obras que se propõe a debater a sociedade atual na última edição do Festival de Berlim. Além do Teddy Awards – que premia filmes com temática queer dentre todos os recortes curatoriais – o longa-metragem dirigido por David France venceu o troféu concedido pela Anistia Internacional dentre os que versam sobre direitos humanos. Já na mostra Panorama – onde foi apresentado – ganhou na escolha popular. O jornalista, que em seu primeiro trabalho de direção foi indicado ao Oscar (“How to Survive a Plague“, de 2012), tinha nessa produção envolvimento pessoal com o objeto da obra que não se repete aqui. Sua intenção é dar visibilidade ao grupo Rede LGBT, que auxiliou quase duas centenas de moradores da Chechênia a recomeçar suas vidas.

Ao contrário do registro histórico dos primeiros anos do vírus da AIDS, que dependia de um conteúdo midiático, aqui France tem poderosas imagens inédita nas mãos. Diversos vídeos de agressões e abusos físicos e sexuais são apresentados. Baseando seu panorama inicial com uma entrevista de David Isteev, coordenador deste importante grupo humanitário, o diretor opta por uma incursão limitada na quantidade de casos tratados, sem deixar de citar outros emblemáticos. A Chechênia vive uma perseguição a homossexuais sem comparação no mundo. Isto porque a covardia estatal é uma característica que torna atípico o que vive aquela região do sul da Rússia, de maioria muçulmana. As mais odiosas formas de homofobia tem levado a assassinatos, torturas e mutilações de inocentes.

Porém, em um momento onde a falsa ideia de tolerância precisa ser passada ao mundo por governos autoritários (não se deixem enganar, é o mesmo que testemunhamos aqui), os porta-vozes de Vladimir Putin alegam não haver registros do que “Welcome to Chechnya” comprova com textos, áudios e vídeos. Na era da pós-verdade, a ausência de institucionalização de uma prática pode ser tratada como se ela não existisse. A forma como a Rússia vem cuidando dessa questão torna a possibilidade de caos social multiterritorial algo concreto. Ao negar o problema, agrada-se uma base (vista como hegemônica da região) e manda um recado para outras áreas do país que podem enfrentar o mesmo problema.

Só que a democratização na produção de conteúdo e a ampliação das formas de propagação de discursos vem tornado essas práticas eficientes apenas aos que desejam se manter na bolha que lhes foi criada. Fosse algumas décadas atrás, uma obra tão fundamental como a de David France demoraria alguns anos para chegar ao público em uma vitrine tão relevante e quase incontestável quanto a Berlinale. Agora, poderá ser vista na 44ª Mostra Internacional de São Paulo, após a temporada em Berlim. Casos ainda em curso, não solucionados. Uma resistência à opressão que vemos ainda estar em processo de formação.

Um dos elementos que mais se destaca na condução narrativa de um documentário que toca em um tema tão delicado é o afastamento ideológico do seu realizador. Não que ele não tenha firmes posições – pelo contrário, a obra é de uma humanidade impressionante e France traz consigo a força da representatividade – mas, não se identifica um foco político dentro dessa questão social. Parece mera obrigação do filme, mas devemos lembrar que estamos diante de uma produção norte-americana sobre um tema russo – olhar estrangeiro historicamente aplicado de formas equivocadas em outras situações.

O cineasta não quer se debruçar nas burocracias ou discursos de quem detém o poder – e mesmo assim lista os líderes que fomentam esse levante ignóbil de parte dos chechenos aos representantes da comunidade LGBT. Traz de forma balanceada todo tipo de abordagem na montagem do filme. Das duras imagens captadas de celulares sobre os flagrantes de crimes de lesa-humanidade, France documenta as consequências físicas e emocionais daqueles que a Rede auxilia. As formas de lidarem com a situação se desmembram entre os que decidem anonimamente começar uma nova vida em outro país e aqueles que optam por levar adiante as denúncias.

Isso acaba permitindo que “Welcome to Chechnya” ultrapasse a denúncia e construa suas narrativas de esperanças pelo recomeço – além da luta por justiça, que prossegue de forma intensa. Ao vilipendiar a questão, a Rússia transforma em refugiados pessoas que não se encaixam nos conflitos que gerariam essa migração forçada. Para a Anistia e outros órgãos, é até difícil delinear seus protocolos, porque autoridades insistem em esconder dados. Sem o direito à liberdade, aquelas pessoas não ofendem seus opressores na seara política, étnica ou religiosa. Mesmo assim, por primária tolerância, foi contra eles declarada uma guerra silenciosa – que o cinema não deixará o mundo voltar as costas.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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