Sinopse: Em 1999, a família Sanford começou a filmar sua rotina em um perigoso bairro de Washington, a apenas 17 quarteirões do Capitólio dos Estados Unidos. Realizado em colaboração com o cineasta e jornalista Davy Rothbart, o documentário foca personagens de quatro gerações dos Sanford: Emmanuel, um estudante dedicado; seu irmão Smurf, um traficante de drogas local; sua irmã Denice, uma aspirante a policial, e a mãe deles, Cheryl, que deve lidar com os próprios demônios para promover o bem-estar da família. Abrangendo duas décadas, “17 Quadras” retrata a permanente crise em curso de uma nação, por meio de uma jornada crua, comovente e profundamente particular de uma família.
Direção: Davy Rothbart
Título Original: 17 Blocks (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 35min
País: EUA
Àqueles que Não se Importam
“17 Quadras“, vencedor do prêmio de melhor montagem de documentário no Festival de Tribeca de 2019, conta a história que – de tão comum – poderia não chocar. O genocídio negro e suas mais diversas motivações e consequências estão nas capas dos jornais (termo que virou apenas força de expressão, já que não são lidos). É a pauta preferida dos programas de televisão sensacionalistas, que adoram comungar de um viés meritocrata para justificar a escalada de violência nos grandes centros urbanos. Poderia ser somente mais um filme, novas individualizações para dramas do cotidiano – mesmo que de muita carga narrativa. Porém, o diretor Davy Rothbart consegue, entre a saída da maratona de filmes do Olhar de Cinema e a intensificação do acesso aos selecionados à 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (onde figura na lista da Competição Novos Diretores), sensibilizar ao ponto de não ter sido possível o registro de palavras logo após a sessão.
O documentário acompanha a família Sanford, no ano de 1999. A ideia do cineasta é construir a trajetória deles ao longo de vinte anos, tendo uma interessante premissa: a proximidade territorial da sua casa com a residência oficial do Presidente dos Estados Unidos. A invisibilização dos corpos periféricos, a parte que o poder estatal não consegue manter a léguas de distância de si. Embora em locais como o Rio de Janeiro esta falsa impressão de convergência é enxergada, na geografia das cidades norte-americanas há um planejamento que procura uma divisão muito mais clara. Mas, nem sempre é assim. Por sinal, em nossa crítica de “Luz nos Trópicos“, quando falávamos das similaridades entre Brasil e Estados Unidos – que não são aquelas que fomentam os debates – poderíamos ter citado como exemplo obras como essa, assistida posteriormente. Apesar de próxima, a Casa Branca não existe aqui.
Quem se interessou por um intercâmbio deste tipo fica com a indicação de um dos destaques do Festival do Rio do ano passado, o potente documentário “Sem Descanso” (2019), de Bernard Attal – de conexão direta entre o genocídio negro dos dois países. Aqui estamos diante de um típico filme de acompanhamento, onde Davy seguirá os passos dos irmãos Akil “Smurf” e Emmanuel Durant (15 e 9 anos na primeira captação), em longos intervalos. A imprevisibilidade é a marca de produções desta natureza, não sendo possível atestar o resultado final. Porém, “17 Quadras” consegue trazer um fragmento bem significativo de boa parte das questões sociais pelas quais a comunidade representada pelos Sanfords passa. Com imagens que não conseguimos tirar da cabeça.
Destrinchar as ocorrências do filme atrapalharia a experiência de quem ainda pode comungar da potência dos relatos e representações – e torna doloroso para quem já viu e sentiu-se tocado. O fato é que acontece com aquela família exatamente o roteiro pensado para uma sociedade que ignora as diferenças de perspectivas por conta da cor e da classe social. A falácia da Terra das Oportunidades ao se dirigir aos Estados Unidos já foi derrubada pelo cinema há muito tempo. Smurf e Durant tem uma realidade muito parecida com a de meninos de qualquer outro ponto da América, onde o esmagamento do capital parece ter sido sempre a única opção. O mais jovem nunca conheceu o pai, que faleceu antes dele nascer. O mais velho não tem a maturidade necessária para dividir com a mãe, Cheryl, as responsabilidades. Ela tenta seguir a vida com um namorado que traz o ciclo de violência doméstica para dentro de casa e Denice – a outra filha – se vale de todas essas referências para fomentar o sonho de ser policial.
Sem que pudesse imaginar a proficuidade da história que contaria, “17 Quadras” nos traz quase todo o tipo de envolvimentos dolorosos possíveis no microcosmo daquelas pessoas. A relação direta com drogas ilícitas, tanto na ponta de uso quanto de comercialização, a banalização da vida negra e a naturalização da tragédia são alguns exemplos. Todavia, até mesmo a especulação imobiliária que vem reconfigurado territórios como Washington D.C. também estão presentes. Cheryl inicia o ciclo trazido por Rothbart falando de esperança e termina mostrando que, na prática, isso não é o suficiente. Do menino que mostra com orgulho seu diploma ao sangue sendo limpado nas paredes da casa, há muita força nas imagens produzidas para o longa-metragem. Perturba até mesmo a nós que, envolvidos em uma sociedade violenta e que costuma espetacularizar essas manifestações.
Fica a impressão de que os objetivo inicial era trazer a partir do basquete a velha fábula do sonho americano. Assim como o futebol no Brasil, os meninos negros têm nesse esporte uma perspectiva de sucesso – já que, até hoje, qualquer debate sobre equiparação das oportunidades e reparação histórica segue desdenhada. Quase como uma versão urbana do ótimo documentário “Hale Couty This Morning, This Evening” (2018), onde o professor RaMell Ross aproveita sua temporada no interior do Alabama para acompanhar outros jovens com essas intenções. Pois é justamente de dentro de uma quadra de basquete que a trajetória de esperança vai se transformando em tragédia.
A premiada montagem do documentário é realizada por Jennifer Tiexiera, também creditada no roteiro. Ela, que estreou na direção esse ano com o ainda inédito “P.S. Burn This Letter Please” (2020), trabalhou no departamento editorial do curta-metragem “St. Louis Superman” (2019), indicado ao Oscar desse ano. Lá é conta a história de Bruce Franks Jr., um político norte-americano que passou por algumas das questões vividas pelos Sanfords. Desenvolveu uma consciência política para ocupar um espaço fundamental, trazendo representatividade.
A cinematografia da tensão racial dos Estados Unidos segue cheia de obras fundamentais para tratarmos do assunto. “17 Quadras“, contudo, não é mais uma. É uma história que deixa claro que exceção não é a regra quando as narrativas de sucesso se sobrepõem à realidade. Aqueles que acham que “vidas negras importam” é só uma frase de impacto, precisam dimensionar a força em imagens como as trazidas aqui.
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