24ª Mostra Tiradentes | Mostra Praça | Série 2
Todo Pessoal
A segunda série de curtas-metragens da Mostra Praça da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes segue um caminho diferente da sessão anterior. Trata importantes questões sociais da contemporaneidade pelo viés da ficção, deixando um documentário mais tradicional para seu encerramento. A oportunidade de revisitar alguns dos destaques de 2020, incluindo um grande vencedor do 48º Festival de Gramado.
A primeira produção é “Você Tem Olhos Tristes“, de Diogo Leite. Uma obra que perpassa pelo racismo estrutural, mas tem como grande mote da trama a precarização do trabalho, ao contar a história do jovem entregador de aplicativos Luan. Apesar da narrativa estilizada, há uma propensão ao naturalismo que faz com que a obra, mesmo sem ser documental, tenha alta carga imersiva. Deixamos aqui o texto original escrito na cobertura do festival gaúcho.
Os contrapontos são feitos pelo reacionarismo de uma classe privilegiada que, de propósito ou por ignorância, encontra-se em alta dose de conexão com a realidade. A revisitação de “Você Tem Olhos Tristes”, em um contexto com a parcela mais pobre da sociedade jogada ainda mais à própria sorte, tem um tom ainda mais desolador. Se em 2020 os reflexos de uma política econômica destruidora gritaram à nossa frente, parece que em 2021 viveremos uma degradação que – já sem precedentes – poderá ser, para muitos, uma crise irreversível.
A sessão segue com “Ela que Mora no Andar de Cima“, um curta-metragem que merecia ter circulado mais por festivais ao longo do ano passado. Dirigido por Amarildo Martins, foi originalmente objeto de texto por Roberta Mathias em uma das maratonas de filmes mais insanas da Apostila de Cinema: no final de semana do Festcurtas Fundaj. Organizado pela Cinemateca Pernambucana, deixamos aqui o texto original.
Aqui a pauta identitária é ampliada, a partir da relação platônica das protagonistas. A imagem de Marcélia Cartaxo, um dos rostos mais conhecidos dos apreciadores do cinema brasileiro atual (incrível como sempre, tal qual em “Pacarrete” e “Helen“, outros destaques de 2020), ajuda na manutenção do verniz ficcional.
Todavia, sempre vale frisar a questão do naturalismo das representações e atuações. Há uma subversão (e lamentamos usar essa palavra, pois ela indica o quão retrógrada é nossa sociedade), em se trazer temas tão polarizantes de maneira fluida, como se o audiovisual cumprisse essa função social de ser o palco de reafirmação de si. Amarildo Martins é mais um que, em uma breve história, traz isso de forma muito sensível.
24ª Mostra Tiradentes | Mostra Praça | Série 2
“O Barco e o Rio” saiu vencedor de alguns prêmios em Gramado e sua trajetória por festivais é bem mais pungente do que o curta-metragem anterior. Bernando Ale Abinader materializa a polarização mencionada na figura de duas irmãs, a qual chamamos no texto original de “antagonistas acidentais de suas vidas” (deixamos aqui o link com a redação completa, publicada originalmente).
Vera e Josi chegam à situação-limite que muitos de nós evitamos (e por vários motivos): o rompimento familiar, baseado nas diferenças. A forma como a narrativa é construída, apresentando inicialmente a perspectiva neutra para caminhar para um lado e primar pela ausência de verbalização, enche o espectador de expectativa sobre a trama – ao mesmo tempo que vai revelando inúmeras formas de sentirmos essa desconexão parental.
Trata-se de uma forma de contar uma história sobre diferenças, sem necessariamente pintar de forma flagrante aspectos positivos e negativos sobre as protagonistas – uma linguagem madura, que o realizador amazonense transformou em prêmios – gerando forte expectativas por seus novos projetos.
Encerrando a série 2 da Mostra Praça, a única obra da sessão ainda “inédito” para a Apostila de Cinema, que abarca questões identitárias de forma muito pessoal por sua realizadora. Ele foi assistido e transformado em palavras totalmente em primeira pessoa por Roberta Mathias, por isso também nos transportamos do mundo da impessoalidade a partir de agora.
Mayara Santana faz de “Rebu” uma investigação familiar e psicológica. Enquanto avalia o quanto tem de comum com seu pai Pedro Bala, nos mostra através de fotos de infância e mapas de Google um pouco de seu passado.
É aí que começa a revelar um dos principais motivos do filme. Intrigada com sua agressividade e personalidade explosiva (as quais enxerga também no pai), a cineasta tenta se curar narrando os relacionamentos amorosos que a fizeram ser quem é.
Como um diário compartilhado acompanhamos as aventuras e desventuras de uma mulher negra, sapatão e pobre que admite ter sido abusiva e irresponsável emocionalmente com uma de suas namoradas (aparentemente todas – desculpa aí, Mayara, você está no processo de cura).
A primeira vez que disse a uma namorada que ela estava sendo irresponsável emocionalmente comigo, a resposta que tive foi: desculpe, mas eu nunca havia escutado esse termo. Como se precisássemos conhecer os termos atuais para entender o que é responsabilidade e que construir devemos ter com quem faz parte de nossa vida.
As contradições de Mayara ficam evidentes e ela não faz a menor questão de escondê-las. Que bom. Assim, podemos acompanhar a sua tentativa de resgate dela mesma. Sem fazer a blasé, inclui o racismo nesse processo nada fácil de abuso entre mulheres que vivem um relacionamento romântico.
Corajosa e obstinada, temos certeza de que Mayara um dia conseguirá dar a outro amor aquilo que ela procura buscar nos rostos e personalidades de nos apresenta: compreensão e afeto.
Ficha Técnica Mostra Praça | Serie 2
Você tem Olhos Tristes (Diogo Leite, 19′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Luan trabalha como bikeboy de aplicativo e enfrenta dilemas e preconceitos na sua jornada diária de entregas em uma cidade grande. Sem hesitar, sonha com um futuro melhor.
Ela que Mora no Andar de Cima (Amarildo Martins, 14′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Luzia vira “cobaia” dos doces e quitutes da vizinha confeiteira, Carmem. A amizade evolui para uma paixão platônica, que traz um novo sabor para os dias amargos de Luzia.
O Barco e o Rio (Bernardo Ale Abinader, 17′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Vera é uma mulher religiosa que cuida de uma embarcação no porto de Manaus. Ela precisa lidar com a irmã Josi, com quem diverge em relação a como lidar com o barco e sobre como viver a vida.
Rebu (Mayara Santana, 21′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Rebu – a egolombra de uma sapatão quase arrependida é um documentário em primeira pessoa que se propõe a investigar dentro da minha vivência sapatão as diversas performances de masculinidade, levando em conta meus três últimos relacionamentos e também em entrevistas com o homem com o qual eu cresci, Pedro Bala, meu pai. O filme pretende abordar com descontração e deboche, temáticas como o talento paquerador, flexibilidade com a verdade, relacionamento abusivo, irresponsabilidade afetiva, reprodução de machismo, impulsividade e romance. Temas que permeiam a vida dos dois personagens, mesmo que separados por um recorte geracional, cultural e de gênero.
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Assinam o texto:
Roberta Mathias: Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia – Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas)
Jorge Cruz: advogado desde 2009, graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e escreve sobre cinema desde 2008.
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