Trópico Fantasma

Trópico Fantasma Filme Crítica Pôster

filmiccaSinopse: “Trópico Fantasma” conta a história de Khadija, de 58 anos , que adormece no trem, depois de um longo dia de trabalho. Quando ela acorda no final da linha, ela não tem escolha a não ser voltar para casa a pé. Em sua jornada noturna, ela pede ajuda e também ajuda os outros habitantes da noite, seguindo seu caminho para casa.
Direção: Bas Devos
Título Original: Ghost Tropic (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 25min
País: Bélgica | Holanda

Trópico Fantasma Filme Crítica Imagem

A Dona e a Noite

Trópico Fantasma“, terceiro longa-metragem do diretor belga Bas Devos, é a estreia da semana da plataforma de streaming Filmicca, focada no cinema independente e autoral. A obra que fez o cineasta migrar do Festival de Berlim – onde apresentou seus outros trabalhos – para o de Cannes – onde levou esta produção para a Quinzena dos Realizadores – é um filme sobre os espaços e as dinâmicas sociais que dependem deles.

Pelo olhar de Khadija (Saadia Bentaïeb), uma senhora que perde sua saída no metrô, pois dorme após um cansativo dia de trabalho, não nos leva de plano à ocupação do espaço urbano. Devos usará em toda a trajetória do filme a fotografia marcante de Grimm Vandekerckhove, os sons – mesmo que minimalistas – dos ambientes noturnos e se valerá da linda trilha, apenas nos dedilhados de violão, do compositor Brecth Ameel. Antes disso, porém, ele formata a diegese em prólogo e epílogo forjados pelo silêncio. A câmera parada observa a casa da protagonista. Os primeiros cinco minutos, antes de todos os desdobramentos da narrativa, retrata um fim de tarde.

A luz ambiente vai se desfragmentando pelas imagens de 16mm. A sequência de abertura de “Trópico Fantasma” revela uma sala típica de classe média. Alguns elementos saltam aos olhos. Duas almofadas no sofá estão organizadas como um encosto. Uma delas parece ter olhos, tirando um pouco o peso da ausência humana em cena. A toalha de mesa dourada, coberta por um plástico transparente, reluz. Tal qual o ouro, é o último objeto a perder seu brilho. Apenas a chegada total da noite é capaz de tirá-la de cena. Por fim, ao fundo da imagem, algo que não chama tanto a atenção na mente do espectador ansioso pelo desenrolar da trama ganha potência no final espelhado: vasos de plantas.

Depois dali seremos levados ao ponto oposto da cidade de Bruxelas. Khadija não consegue voltar porque não há mais trens disponíveis e precisa achar uma maneira de retornar para casa. Ela busca em espaços similares aos quais transita em sua rotina, como uma galeria comercial. Locais que parecem depender da presença humana para, de fato, existir. Com isso, o filme já nos traz duas provocações logo de início.

A primeira envolve a própria tristeza de um fim de tarde vazia, um sentimento que parece ampliado na atual conjuntura, onde muitos de nós passam o dia todo no dilema entre sobreviver com o que nos sobrou de saúde mental e a busca por produtividade. O fim da luz do Sol cria, em muitas vezes, a sensação de um dia perdido. A segunda é imaginar os grandes centros urbanos sem as amarras impostas pelo distanciamento social. Mesmo desrespeitado por muitos, ele ainda existe. E o peso da noite só será o mesmo quando nossos dias foram plenos.

A cidade vazia traz uma mistura de desafio e medo. Por óbvio que uma mulher, uma senhora imigrante, tende a se vincular mais ao segundo sentimento. Contudo, o trabalho do cineasta e do diretor de fotografia nos traz, em alguns momentos, a ideia de que, à noite, temos aqueles espaços urbanos nas palmas de nossas mãos. Travellings pelas ruas desertas, aumentando e diminuindo a perspectiva da personagem é o toque de dinamismo em um longa-metragem sobre busca.

Os pontos de referência onde não há mais quase nada em funcionamento é um vínculo universalista, como o pedido de ajuda em uma loja de conveniência. Mais do que isso, ao trazer de forma crua esses territórios, toda a artificialidade em volta dele salta os olhos. Em uma delas, um viveiro com uma arara no meio de um corredor do shopping. No outro, um expediente comum nas estações de metrô ao redor do mundo: sons da natureza, como se fosse possível refletir alguma naturalidade em um espaço criado para ser funcional. Por que devemos fingir prazer nas coisas tolas do nosso cotidiano?

Mais adiante, quando o dia estiver perto de nascer (e não é spoiler, até hoje não se tem notícia de uma noite que não teve fim), os pássaros voltam a se destacar no som da obra. Ao fazer isso em uma área aberta, Devos parece brincar com o público, que pode até fingir que não há, ali, uma adição de pós-produção. Quem sabe não há mesmo e o silêncio das madrugadas de Bruxelas não permitiu essa captação? Por que fingir uma naturalidade falsa nas coisas não tão tolas do nosso cotidiano? As plantas em vasos, aquelas que ganham dimensão ao fim, parecem uma junção de formatar um prazer, além de naturalizar e diminuir a artificialidade do que hoje chamamos de casa.

Enquanto filme, “Trópico Fantasma” é uma experiência imersiva. Vencedor do prêmio de melhor direção no Festival de Cairo de 2019, ele se prende a alguns aspectos narrativos para que possamos conceder toda a nossa atenção ao que se passa com a personagem de Saadia Bentaïeb. No clímax sóbrio que a proposta de cinema de Bas Devos permite, uma bonita mensagem a partir de um vínculo de empatia imediato. Uma noite na rua ensinou muito a Khadija.

Será que foi a única noite mesmo? Conhecendo as dinâmicas sociais e a forma como aquele por quem ela sente esta empatia é tratado, podemos apostar que não. No fim, a casa. O espaço que não muda se você não quiser. Seu próprio mundo, onde tudo parece estar sempre no lugar certo. Uma zona de conforto que a ausência de humanidade torna cada vez mais difícil de sair.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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