Era uma Vez na América

Era Uma Vez na América Filme Sergio Leone 1984 Crítica Pôster

Sinopse: Em “Era uma Vez na América”, um ex-gângster judeu da época da Lei Seca retorna ao Lower East Side de Manhattan mais de trinta anos depois, onde mais uma vez deve enfrentar os fantasmas e arrependimentos de sua antiga vida.
Direção: Sergio Leone
Título Original: Once Upon a Time in America (1984)
Gênero: Drama | Crime
Duração: 3h 49min
País: EUA | Itália

Era Uma Vez na América Filme Sergio Leone 1984 Crítica Imagem

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Último dos sete longas-metragens do diretor Sergio Leone, “Era uma Vez na América” chegou esta semana ao Petra Belas Artes à La Carte. Exibido no Festival de Cannes de 1984, usa como base uma das poucas autobiografias de gângster reais, sendo adaptação do livro de Harry Grey chamado “The Hoods“. Há um pouco de exercício de frustração de um realizador que não quis tocar o projeto que dava vida nos cinemas ao texto de Mario Puzo no inesquecível ato inaugural de uma das mais famosas trilogias da história do Cinema.

Entre os maiores responsáveis pela qualidade do filme está Nino Baragli, um dos mais talentosos e experientes montadores da histórica do cinema italiano. De confiança não apenas de Leone, mas de Pier Paolo Pasolini. Em um currículo de mais de duzentos trabalhos, foi ao lado dele que o diretor transformou quase dez horas de material bruto – que depois viraram dois filmes de três horas cada – em um drama de pouco mais de três horas e meia. E há, claro, a trilha sonora de Ennio Morricone, que nos deixou há pouco menos de um ano. As estruturas da trama são conduzidas por temas inesquecíveis como “Poverty“, que ultrapassam até a memória afetiva de quem assistiu ou admira o longa-metragem, algumas das mais belas de sua carreira – e que não pode concorrer ao Oscar por um erro dos distribuidor norte-americano na hora de submetê-la à Academia.

Esses elementos soam atemporais e imunes a qualquer revisão. Quase quatro décadas se passaram e a experiência segue pautada pelo ritmo cadenciado da narrativa, o design de produção carregado de fidelidade e de valorização das imagens e dos objetos e uma música que nos envolve. Hoje celebrado como uma das grandes produções do gênero e maiores obras da década de 1980, o projeto da vida do cineasta italiano não teve uma recepção tão calorosa no período de seu lançamento, até como reflexo de uma temática muito explorada pela Nova Hollywood e que seguiu com Barry Levinson em “Bugsy” (1991) e Brian de Palma em “Os Intocáveis” (1987).

Era uma Vez na América” estava no meio do caminho entre a forma icônica pela qual os dois primeiros filmes da trilogia “O Poderoso Chefão“, de 1972 e 1974 se vincularam à memória do público e o desenvolvimento do gênero em produções como as já citadas. Talvez o grande segredo que nos envolva até hoje com a história é trazer para o público parte da visão de Noodles (Robert de Niro). Com ele nos surpreendemos com os caminhos pelos quais redescobrimos e reinterpretamos nossas trajetórias. Projetamos em seu arco dramático um medo que nos consome ao longo de toda a vida: e se, ao final de tudo isso, descobrimos que parte de nossa existência é uma farsa? Leone, então, constrói uma base para que as revelações da hora final não ganhem nem o ar de thriller e nem tanto o ar de tragédia. O protagonista parece viver um rito de passagem, quase como se colocasse nas mãos e desdobrasse o conceito de finitude de si.

Os conhecidos chefes do crime organizado norte-americano, mesmo arrependidos ou com suas dívidas zeradas perante a sociedade, nunca gostaram de se ver reproduzidos nas telas de cinema. Tanto que Robert De Niro, como parte da aplicação de seu método de interpretação, quis encontrar um deles, Meyer Lansky, que não aceitou. Porém, o repertório do ator transforma seu trabalho em nada menos do que inesquecível. Vivendo uma sequência de trabalhos que vão da oscarizada interpretação de Vito Corleone às parcerias com Martin Scorsese em “Taxi Driver” (1976) e “Touro Indomável” (1980) – sem esquecer o projeto ao lado de Michael Cimino em “O Franco Atirador” (1978), De Niro estava no auge da carreira e assume o papel depois das negativas de Al Pacino e Jack Nicholson. Aqui ele conduz um protagonista introspectivo, observador, que antagoniza no comportamento com o amigo Max (James Woods), tornando duvidosas quaisquer movimentações de ambos em cena.

Já o verdadeiro Harry Grey pareceu a Leone um gângster quase alegórico, reproduzindo falas de leituras cinematográficas sobre esta realidade. Dizia que via no escritor uma espécie de Edward G. Robinson, demonstrando o quanto o próprio Cinema foi capaz de moldar esse aspecto cultural e os comportamentos oriundos dele. Só que o diretor demorou tanto no desenvolvimento do projeto, que quando ligou para Grey para avisar que iniciaria as filmagens, descobriu que ele havia morrido há anos. Já Morricone terminou sua composição antes mesmos da produção finalizar – o que dá a dimensão da complexidade aqui. Foram quase dois anos de testes de elenco e dez meses de filmagens. Orçado em trinta milhões de dólares, arrecadou pouco mais de cinco, um retumbante fracasso, mesmo com (ou talvez por isso) a versão picotada que aportou nos EUA, de apenas duas horas e meia e – em decisão ainda mais grave – cortou a estrutura de flashbacks e primou pela total linearidade da narrativa. Crimes que a era da informação não permite mais, amém.

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Em um longo prólogo, a primeira meia hora de “Era Uma Vez na América” se vale pouco de diálogos. A montagem de Baragli faz uma transição temporal a partir do toque de telefone – um curioso elemento de união através de épocas que não mais existe. Porém, existia entre as décadas de 1930, anos finais da Lei Seca nos Estados Unidos, e a de 1960, quando Noodles refaz o caminho de volta a Lower East Side, de onde saiu com fama de X9 depois que seus três parceiros de crime foram assassinados pela polícia de Nova Iorque. O cineasta explora de todas as formas a figura da Brooklyn Bridge, como notamos já na identidade visual do filme. É a partir dela que a passagem de tempo, as estações do ano e as mudanças de ventos e sensações se incorporam.

Antes de sermos levado pelas origens do bando, o reflexivo protagonista se vincula ao ator que o interpreta. Passados alguns anos, a memória visual da primeira sequência, que mostra De Niro deitado, nos remete a outra incursão sua no mundo da máfia, quando ele aparece como Al Capone em uma entrevista na barbearia em uma das excepcionais cenas de “Os Intocáveis“, de um De Palma que começava a explorar o maneirismo em suas obras, refazendo até Eisenstein em um novo contexto. Dali em diante, Leone opta pelo uso com parcimônia do flash forward, já que usa a linearidade quando traz as histórias do passado, quando os meninos aplicavam pequenos golpes. Porém, o próprio “Era Uma Vez na América” tem a sua própria lista maneirista de referências e homenagens a filmes de gângsteres.

Quando novo, observa-se uma relação de Noodles com o olhar crítico sobre a sociedade pela leitura de “Martin Eden“, obra de Jack London lançada no início do século XX que traz um autor que questiona os preceitos burgueses – e que ganhou uma adaptação digna para os cinemas em 2019 pelo diretor Pietro Marcello. O roteiro aqui inclui essa desilusão de mundo como fonte inspiradora – e a forma como Noodles explora esse aspecto para consolidar um romance bebe da fonte de “O Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald, o que torna o filme ainda mais canônico em relação aos EUA daquele período.

A ponte entre o que seriam os dois tomos de “Era uma Vez na América” traz novamente a vulnerabilidade de seu protagonista. Esta foi a maneira pela qual o diretor carrega de humanismo uma obra que tem como pano de fundo a crueldade, sob todos os aspectos. Em todas as dinâmicas envolvendo o passado, é sob esse viés exploratório que vamos conhecendo Noodles – o que torna a escalada de crime e violência dele e de seus iguais parte de um processo. Quando chegamos nesta transição da metade da sessão temos um homem que vive um luto atrasado, se esforçando para sofrer por algo que não deveria lhe afetar mais. Temos um personagem que guarda em si uma das piores dores que podemos sofrer – a da culpa, a de não ter a paz de colocar a cabeça no travesseiro todas as noites.

Já em relação à leitura sobre uma sociedade, o longa-metragem é mais um dos grandes documentos da cinematografia norte-americana e sua sanha progressista. Pelo olhar de quatro garotos que colocaram como meta nunca terem patrão na vida, suas trajetórias pelo olhar do italiano soa mais crua, menos poética do que as narrativas que a América faz de si para si. Isso auxilia em momentos mais pragmáticos, em que Leone não se socorre a maniqueísmo. Em um exemplo, o conflito do grupo com os sindicatos de trabalhadores e a ideia de que é possível obter certas vitórias por vias democráticas. Nada nessas relações se fincam em concreto duro, nem em tintas exageradas de polarizações ou contrapontos. Como sistema complexo que é, aquela comunidade tira de seus agentes aquilo em que eles possam contribuir. Ou seja, sob a ótica panorâmica, todos somos cruéis. Sob a ótica ampliada, devemos compreender e sermos aliados enquanto indivíduos de acordo com nossas funções.

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Há momentos de “Era Uma Vez na América” de puro cinema, como a sequência na maternidade (em diálogo com a linguagem kubrickiana), desde o posicionamento das câmeras – com muito uso do plano zenital – até a forma como a trilha de Morricone dinamiza aquele evento. Já as dificuldades de se comportar socialmente por parte de Noodles acaba sendo, em alguns momentos, exageradamente reiteradas. Faz com que parte de sua trajetória, a partir do estabelecimento de que ele age daquela maneira como fruto do próprio meio, se torne aventuras sexuais onde essa crueldade se exponha ainda mais. A cena graficamente mais forte, do estupro de Deborah (Elizabeth McGovern), é apenas uma delas e até hoje é capaz de gerar por parte de alguns um distanciamento à obra.

Os últimos quarenta e cinco minutos, que nos colocarão de frente com a farsa de um passado, ganha contornos de liturgia. É quando toda a sensibilidade que Leone deseja atingir se materializa, no meio de um leque problemático e conflituoso de relações. Os adeptos da leitura sobre os efeitos do ópio, também podem usar os mesmos argumentos, para chegar a uma conclusão diferente: deixa de ser a farsa real e passa a ser a farsa imaginada, delirante.

Não há como ignorar que o passar dos anos torna todas as nossas crises mais incontornáveis e o perdão que buscamos soa mais utópico. Independente da fé sobre nossos atos, sobre o outro ou pelo que transcende, só há um tipo de paz: aquela que se estabelece na nossa mente. Nisso, quando “Era Uma Vez na América” chega ao fim, depois de tantos reencontros, parece que Sergio Leone também chega no espaço em que ele queria estar.

Assista Ennio Morricone em Roma, conduzindo a trilha de “Era uma Vez na América” no ano de 2004:

 

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Como funciona: Planos de assinatura com acesso a todos os filmes do catálogo em 2 dispositivos simultaneamente.
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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

1 Comment

  1. Muito obrigada pela sua resenha aqui.com o seu profundo conhecimento e sua abalisada análise tive um nsight que me comoveu muito e pude concluir que posso deitar no travesseiro em paz. Sem culpas. Sério mesmo.

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