O Espírito da Colmeia

O Espírito da Colmeia Filme 1973 Crítica Pôster

Sinopse: Em “O Espírito da Colmeia”, as duas pequenas irmãs Ana e Isabel moram em terras rurais da Espanha, na década de 40. Após assistirem ao filme Frankenstein (1931) ficam obcecadas pelo estranho personagem e tentam encontrá-lo.
Direção: Victor Erice
Título Original: El Espíritu de la Colmena (1973)
Gênero: Drama
Duração: 1h 38min
País: Espanha

O Espírito da Colmeia Filme 1973 Crítica Imagem

Teia de Humanidade

Há inúmeros motivos para se apaixonar e entender porque “O Espírito da Colmeia“, quase cinquenta anos após seu lançamento, é capaz de emocionar e deslumbrar os sortudos que o escolhem para uma sessão. Uma das atrações imperdíveis do festival Volta ao Mundo: Espanha, que fica em cartaz no serviço de streaming Petra Belas Artes à La Carte até o dia 16 de junho, a produção dirigida por Victor Erice não quer saber do embate entre qualidade de forma e conteúdo. Explora todos os elementos audiovisuais, do imagético à metalinguagem, com ares de atemporalidade. Falar um pouco deles é um prazer, mas que merece ser partilhado com a experiência de assisti-lo.

Partindo da relação entre duas irmãs, Ana (Ana Torrent, com apenas seis anos – e que em 1976 estrelaria outro grande destaque da mostra, “Cria Cuervos“, de Carlos Saura) e Isabel (Isabel Tellería), o filme encanta ao falar das dinâmicas sociais e familiares em construções de cenas belíssimas e com uma protagonista que, mesmo carregando a inocência da idade, é conduzida em um papel que emana mensagens a partir de sua introspecção. O que deveria ser somente uma catarse aristotélica a partir da tragédia, vai ganhando elementos, camadas que o desenvolvimento da arte nos proveu – e que culminou com a magia audiovisual que entendemos por Cinema.

É a partir dele que a trama se desenrola. No município de Segovia, ao norte de Madrid, uma Plaza del Azoguejo combalida pela destruição da Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial recebe um cinema móvel, em um caminhão que projetará “Frankenstein” (1931) para os moradores. Ana e Isabel estão entre elas, em um estado de hipnose e torpor que fará parte do público se lembrar da poesia por trás da experiência de “Cinema Paradiso” (1988). Aqui este mote se desenvolve em relações que ultrapassam o entendimento sobre origens e passado do longa-metragem de Giuseppe Tornatore.

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Um dos responsáveis por nos manter absorvidos pela beleza de “O Espírito da Colmeia” é o diretor de fotografia Luis Cuadrado. À época com pouco menos de quarenta anos, em uma carreira prodigiosa que contava com dezenas de produções, ele começava ali a perder a visão. Por trás de um dos trabalhos mais impressionantes do cinema espanhol – e que nos fascina até hoje – havia outra tragédia. O profissional seguiria sua carreira por mais quatro anos, até que a cegueira total e um tumor no cérebro o impediram de prosseguir. Deprimido, ele cometeria suicídio em 1980, com apenas 46 anos.

Há momentos em que parece que estamos mergulhados na arte barroca, tal qual algumas pinturas de Rembrandt ou de um grande nome da arte da Espanha, Diego Velázquez. Coerente com as ideias que nos transmite Ana, uma menina que não consegue ainda diferenciar realidade de ilusão. Tanto é verdade que a própria atriz acreditava que Frankenstein, de fato, existia – e interagiu com o ator José Villasante, intérprete do monstro, como se ele fosse um assassino de crianças.

Por outro lado, seu pai Fernando (Fernando Fernán Gómez) aplica um duplo olhar em seu trabalho enquanto apicultor. Tenta extrair certa poesia, mas sem esquecer do pragmatismo da atividade. Erice, então, traz um forte elemento de subtexto que começa aqui e ganha dimensão em outros aspectos da obra. Humanos brincando de serem Deus, criando pequenos mundos que eles podem controlar e estabelecer convenções. Este sentimento vai das colmeias ao filme que as crianças assistem na praça – e à própria obra que assistimos. Quando Ana decide buscar sozinha Frankenstein e desenvolve uma obsessão pela casa com o poço, a menina já parece pronta a refletir sobre a base de comportamento da infância.

Isto porque somos, em nossos primeiros anos, levados a reproduzir comportamentos (olha o Aristóteles aqui de novo), mas também forjamos parte de nossas atitudes (ou repressão a elas) no medo. “O Espírito da Colmeia”, portanto, evoca essa teia social, de humanidade, em que estruturas de poder vão se conectando para fazer de Ana (e Isabel, nunca deixa de observar a irmã) uma agente com seus próprios símbolos. Pais, professores, Deus – todos são figuras de admiração e temor. Nessa busca por autonomia que ultrapasse essas relações, a menina precisa o quanto antes tomar as rédeas da própria vida. Por isso fica mais tempo com a cabeça nos trilhos do trem ou acredita ser capaz de interagir com um monstro quando se deparar com ele.

Por fim, Victor Erice ainda é capaz de dar poder a Ana. Ao criar com o fugitivo (de caráter político) interpretado por Juan Margallo uma relação de dependência, a protagonista terá pela primeira vez o prazer de ser útil. Levando comida ou amarrando os cadarços, ali temos algumas das primeiras experiências realmente humanas de um ser em formação. Cada dinâmica de Ana, com Isabel, seus familiares e o próprio território, terá um peso diferente de acordo com a projeção do espectador. O que podemos afirmar é que é impossível sair incólume de sua sessão bem improvável que se chegue ao fim pelo menos encantando com as imagens.

Sob algumas óticas, não deixamos de ser embriões apenas porque saímos dos úteros de nossas mãos. Até porque permanecemos dependentes até que encontremos nossa autonomia. Por isso um prólogo que explora as individualidades daquelas pessoas. Por isso ao final contendo apenas uma afirmação: “sou Ana“. “O Espírito da Colmeia” é um desafio para quem acredita em uma autonomia plena. Isso nos tornaria um Deus, brincando de extrair o que há de mais doce dos outros seres. Nada é tão simples assim.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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