Sinopse: Dois amigos tem uma noite boa.
Direção: João Pedro Faro
Título Original: Sombra (2021)
Gênero: Comédia | Thriller | Experimental
Duração: 1h 13min
País: Brasil
Para Aqueles que Tapam os Nossos Sóis
Existe um público específico dentro dos múltiplos públicos de um evento de audiovisual como é o Festival Ecrã. Quem se envolve em produções desta natureza sabe que são várias as frentes na busca por formação de plateia, despertar de interesses de frequentadores – e não são poucos os aspectos que os definem. Desde o início do período de isolamento social, por exemplo, as mostras de cinema precisaram se reinventar (palavra que todos adoramos utilizar) para mitigar uma das grandes perdas: a territorial.
A segunda e terceira edição do Ecrã, assim como boa parte das exibições que ocorrem na Cinemateca do MAM, tem um público fiel e definido pela localidade. Trabalhadores em seus intervalos de jornada, comerciantes informais que precisam de uma pausa em suas horas intermináveis de busca por recursos em um sol escaldante, moradores do Centro do Rio de Janeiro – formais ou em situação de rua. O espaço da Cinemateca é mais do que democrático, ele é integrado. Exige-se somente o respeito pelo do lado, como deveria ser em tais lugares.
Todavia, há outro espectador cativo. Um que não se perdeu na transposição do presencial para o virtual. Pelo contrário, se ampliou porque permitiu o diálogo com o público distante, aquele interessado que não se consolidava na fruição das obras pela distância territorial. Um grupo que abraça o Ecrã enquanto uma das tábuas de salvação contra o tradicionalismo audiovisual, que acredita que faz parte das criações – além da criatividade – a ousadia, a experimentação. Até por isso a curadoria vai além do que chamamos formalmente de Cinema Experimental, já que é possível ir além do óbvio e da fórmula dentro de espectros pré-definidos de linguagem. Filmes com “potencial mercadológico” ou de “cineastas veteranos” ou de “apego popular”. São pequenas caixas que não são lidas como limitadoras pelo Ecrã.
No Brasil (e digo desta forma porque não estou envolvido na rotina da produção dos outros países) é comum a união de potencialidades. Em um campo difícil como o da Cultura, mas ao mesmo tempo inebriante e apaixonado como o audiovisual, aqueles que se envolvem vão reunindo em seus portfólios as mais variadas funções. As teias sociais e profissionais também são complexas, apesar das dificuldades de se obter ganhos que nos possibilite “viver disso” transforme qualquer projeto em uma montanha-russa de expectativas e frustrações, de arrebatamento e depressão. Somos todos, em graus variados, cinéfilos, críticos, cineastas, curadores, produtores, professores – com temperos que dão um sabor de Síndrome do Impostor a cada prato.
Dentro do público cativo do Ecrã, que poderíamos citar em parte nominalmente (e alguns já se tornam mais conhecidos, porque também é deles o futuro desta arte no Rio de Janeiro), está João Pedro Faro. Um daqueles que o Cinema o fez se apaixonar muito novo. Surge enquanto fenômeno precoce, de profundo conhecimento sobre a historiografia da linguagem, capaz de produzir textos que analisam estética e narrativa com propriedade e vocabulário que outros, com décadas de estrada não conseguiriam. Pode ser que leve alguns deles a vestir o manto de farsante, como se vivêssemos um ranqueamento. Por óbvio que sua aparição geraria a resistência natural a uma espécie que transformou sua inteligência em ódio, o vitorioso em inimigo.
Portanto, era de se esperar que “Sombra“, primeiro longa-metragem de Faro, gerasse reações extremas. Ele vive um núcleo dos mais talentosos do território que ocupa. Possui sua carga de privilégios, mas também suas qualidades artísticas e intelectuais. Consegue levar adiante suas criações por vários aspectos, dentre eles o seu mérito. Porém, ao ser parte de uma engrenagem que torna nebuloso os nossos ofícios no campo aberto que é trabalhar com a arte, foi para as noites frias do festival (na semana do Ecrã sempre faz frio) com um cobertor curto, porque todos nós estamos assim. Aqueles que não o elegeram como herói, aguardavam com ansiedade a oportunidade de pintá-lo como vilão.
As leituras atravessadas para deslegitimar João já foram publicadas. As esfuziantes palavras em críticas de “Sombra” também. Ou, quem sabe, as interpretações não sejam o resultado de uma guerra de egos imposta, em um dos ambientes mais competitivos e tóxicos o qual teremos acesso? Uma obra de arte será sempre autobiográfica, mas esta não deveria ser a premissa para atacar de forma pessoal seu criador. Da mesma maneira que os aspectos de sua personalidade e sua trajetória só merecem se tornar argumentos para celebrá-lo se vier carregada de fundamentação. Dizer que ele “merece” ouvir porque se forjou nas redes sociais e no potencial midiático de sua bolha é pouco. Ter o telhado de vidro não torna menos grave as pedras em exagero que lhe jogam. O festival acabou, mas as consequências do debate frágil que se impôs a “Sombra” ficarão – até que um novo mangue bangue chegue na praça.
O longa-metragem tem sua carga de comunicabilidade. É referencial no funk de abertura e geracional na forma de expressão. Uma guerrilha caseira, contemplativa, no que sobrou de possibilidade de marginalizar o cinema. O exótico espetacularizante sobre a nossa cultura sempre existiu e a portuguesa Carmen Miranda está lá. Se a globalização e a tecnologia não fez que os os quase três mil anos do questionamento sobre o terraplanismo por Pitágoras fosse absorvido, é bem provável que alguns acreditem que andamos com uma cesta de frutas na cabeça. O milagre do amor do Eurythmics eclipsado pela rotina de ódio que assola um grupo de pessoas rancorosas que são críticos quando lhes convém.
No Letterboxd, Faro é Carmen Miranda. Na Multiplot! ele é o fenômeno precoce, com professoral. No Twitter ele é o retrato de uma geração que vai da euforia ao caos em minutos – apaga, se apaga, julga e se arrepende. Levar essas percepções para “Sombra” é parte do jogo, assim como trazer aquelas que temos sobre nós e as formas de ocuparmos os espaços. Na mesma noite carioca que a parte final da produção ganha forma, aquela barata andando sobre pedras portuguesas talvez seja o maior desafio que um homem branco como eu tem pela frente ao encontrar com a namorada um grupo de amigos. Faro, então, parte de uma sequência de não-acontecimentos, conjecturas e projeções para tornar o que se segue em um thriller dramático, a extração de empatia – para aqueles que chegaram até ali.
Em uma das redações mais difíceis que poderia criar, sem apelar para menções a outros nomes, sem mencionar histórias as quais eu não conheço e focar em João Pedro Faro, a busca por essa mistura de análise imparcial e não-valorativa acabou por se tornar um desagravo. Ou talvez o seja só para aqueles que sabem que não foram tão justos assim na leitura de “Sombra“.
Clique aqui e acesse a página oficial do Festival Ecrã.
Clique aqui e leia nossos textos de filmes selecionados para o Festival Ecrã.