Sinopse: Nos dias finais do reinado de Marcus Aurelius, o imperador desperta a ira de seu filho Commodus ao tornar pública sua predileção em deixar o trono para Maximus, o comandante do exército romano. Sedento pelo poder, Commodus mata seu pai, assume a coroa e ordena a morte de Maximus, que consegue fugir antes de ser pego e passa a se esconder sob a identidade de um escravo e gladiador do Império Romano.
Direção: Ridley Scott
Título Original: Gladiator (2000)
Gênero: Épico | Drama | Aventura
Duração: 2h 25min
País: EUA | Reino Unido | Malta | Marrocos
A História Sempre Contada
Relembrar “Gladiador” no aniversário de vinte anos de sua consagração no Oscar de 2001, é retomar contato com dois aspectos interessantes de formação audiovisual. Um pessoal e outro da coletividade. Dirigido por Ridley Scott, a obra levantou cinco troféus: filme, ator (Russel Crowe), figurino, som e efeitos visuais – com outras sete indicações. Fez a limpa unificando prêmios principais no BAFTA, PGA e até no MTV Movie Awards. Arrecadando nas bilheterias mundiais mais de 450 milhões de dólares, (4.5x seu orçamento) é uma das, cada vez mais, raras uniões de sucesso de público e de jurados das temporadas de premiações.
Começamos pelo segundo aspecto, para não me colocar como figura central logo nas primeiras linhas desta revisitação – no momento parte do catálogo da Netflix. O longa-metragem nos leva de volta aos épicos que a Era de Ouro de Hollywood lançou na década de 1950 e início de 60 com muito sucesso, até “Cleópatra” (1963) quebrar a Fox. Não há como deixar de relacionar a história de Maximus a “Ben-Hur” (1959), “Spartacus” (1960), “O Manto Sagrado” (1953), dentre outras narrativas que usavam o Império Romano para apresentar uma trama política cheia de aventuras, de uma estética clássica, geralmente usando o CineCittà como locação.
Ao contrário da série “Roma” (2005-2007) da HBO, a Universal preferiu se aliar em coprodução com Malta e levar todas as locações do filme para o arquipélago localizado no Mediterrâneo. Entretanto, na época em que o cineasta colocou na praça o filme, uma nova geração vivia um momento importante na forma de consumo audiovisual, com a popularização do DVD.
Ao contrário do VHS, que tinha cópias originais encarecidas para alimentar o mercado de videolocadoras e dependia que o espectador gravasse uma cópia da produção (ou passando na TV, em boa parte das casas dublada e com comerciais) ou fizesse a transposição da fita alugada para uma “virgem” (o que demandaria dois caros aparelhos eletrodomésticos em casa); a mídia digital se desenvolveu a partir da oferta direta ao consumidor dos discos. Como forma de atrair ou justificar os preços, edições contendo horas de conteúdo extra sobre o processo de produção, cenas inéditas, finais alternativos ou até sequências antes do processo de pós-produção. Com isso, não apenas pequenas lições de cinema e de como funciona a indústria do entretenimento se tornaram possíveis, como também a chance de rever com alta qualidade vários clássicos. Incluindo, claro, os épicos.
Isso fez com que novas criações envolvendo gêneros desgastados ou tidos como decadentes se tornassem bem vistas por Hollywood de novo. O que Clint Eastwood fez em “Os Imperdoáveis” (1992) deixou de ser réquiem do início dos 90 para se tornar tendência no início dos 00. Dos musicais modernos como “Moulin Rouge – Amor em Vermelho” (2001) à retomada de adaptações da Broadway com “Chicago” (2002). No caso das antigas histórias sobre Imperadores, tanto a repetição de premissas envolvendo a ganância pelo poder e as consequências da ruptura política que tem aqui Commodus (Joaquin Phoenix) como símbolo, até revisionismo crítico como o mal recebido “Alexandre” (2004), de Oliver Stone, estrelado por Colin Farrell (e trilha de Vangelis, uma flagrante tentativa da Warner de repetir o abalo provocado por “Gladiador”. Aliás, o álbum contendo os bonitos temas de Hans Zimmer – usado logo de cara na primeira cena – é outro que se beneficiou do aquecido mercado fonográfico e é, até hoje, uma das trilhas sonoras mais vendidas de todos os tempos.
Já em relação ao aspecto pessoal, o início de 2001 marcava uma das primeiras maratonas – ainda limitada às salas de cinema – por indicados ao Oscar. Apesar de “Titanic” (1997) e “Beleza Americana” (1999) já tenham me levado ao novos estabelecimentos no shoppings centers cariocas motivados pela lista da Academia, naquele ano a premiação se tornou um aspecto com peso decisório nas minhas escolhas. Não com este longa-metragem, que abriu a temporada do verão no hemisfério norte em maio, estreando mundialmente ao longo do mês de maio (prova da longevidade da obra, já que a campanha para o Oscar esquenta mesmo uns seis meses depois).
Um ano pensado para dar um troféu a Julia Roberts com “Erin Brockovich, Uma Mulher de Talento” (2000), mas que ficou marcado também pelo vislumbre visual de “O Tigre e o Dragão” (2000) de Ang Lee (mais reconhecido do que “Matrix” no ano anterior, com os estúdios entendendo que a fantasia também tinha força na temporada, dependendo do lobby) e pelo sucesso de “Traffic” (2000), que dividiram as vitórias entre si em boa parte das categorias e ainda fez Steven Soderbergh levar a direção de Scott (mesmo duplamente indicado). Ridley até hoje não levou uma estatueta, apesar de quatro lembranças. Três como diretor (esta, “Thelma e Louise” de 1992 e “Falcão Negro em Perigo” de 2001) e como produtor de “Perdido em Marte” (2015).
Veja o Trailer de “Gladiador”:
Chegando à revisitação vinte anos depois, “Gladiador” soa hoje bem mais referencial ao gênero do que o perceptível para os olhos encantados de um adolescente, que teve tanto na primeira sessão quanto nas outras em DVD, o foco nas três longas cenas que ancoram a emoção da trama. A primeira é a mais longa. Em quase quinze minutos, Scott usa o único espaço possível para criar uma cena de guerra, na batalha em que Máximo, enquanto comandante, sai vitorioso. Vale lembrar que “Coração Valente” (1995) se transformou em ícone deste tipo de construção visual alguns anos antes – e que se repetiria desde “Troia” (2004) à trilogia “O Senhor dos Anéis” (2001-2003). Efeitos da digitalização, aqui usada de forma bem mais econômica por um diretor que viveu outro período, surgindo enquanto nome no fim do ciclo da Nova Hollywood, ainda na década de 1970 com “Os Duelistas” (1977) e “Alien – O Oitavo Passageiro” (1979) – até chegar no ousado “Blade Runner, o Caçador de Androides” (1982).
Parece que a consciência sobre a transição na forma de fazer um filme impactada pela mudança de tecnologia bateu forte no cineasta. Ele coloca alguns elementos representativos que brincam com essa dupla chance de linguagem, que ainda se vale de cenários grandiosos e figurantes em profusão, mas já dependente do CGI. Isso vai desde a fotografia, que no primeiro ato – de uma conspiração no meio de um conflito – é bem mais fria, carregado de cinza que rompe de forma absoluta com os clássicos em Technicolor. Scott traz ali uma criação moderna, de violência estilizada, uso de câmera lenta e um apego na montagem de cortes rápidos para ampliar a virulência das lutas de espadas. Ele retomará esse expediente no clímax, envolvendo a rixa entre Maximus e Commodus.
Porém, usa no segundo ato – de recomeço e uma nova vida do protagonista, uma fotografia bem menos sombria. Territorialmente mais próximo de Roma, na província de Zuccabar há até certa solaridade. O sangue vira um elemento mais valorizado de forma estética, contribuindo com a maneira como o personagem de Crowe se nega a agredir de forma imotivada. Nos preceitos éticos de um soldado, sua ação na guerra deverá ser reativa ou a partir da crença em uma missão. Ali ele não encontra nada disso, prefere viver o luto do ponto de virada entreatos a partir do assassinato de mulher e filhos.
A trama política começa a tomar conta na divisão de núcleos. Phoenix – que surge de forma absoluta nas primeiras cenas, em que constroem a personalidade de Commodus de maneira rápida, a partir dos planos de morte do próprio pai – é um Imperador que precisa atingir de forma célere a popularidade. Opta por oferecer o oposto do que Marcus Aurelius (Richard Harris), seu antecessor, deu ao povo. Seis meses de jogos e a volta dos gladiadores na arena do Coliseu.
Flerta com o autoritarismo ao não enxergar legitimidade no Senado – o momento em que “Gladiador” se encontra com os caminhos do universalismo e da atemporalidade. Repete as táticas de todo governante tirano ou antidemocrático, nas alegações de que os eleitos pelo povo, na verdade, fazem parte de uma elite – enquanto que ele, de forma soberana, é escolhido por Deus para ocupar aquele cargo. Teoria do Direito Divino que se consolidou nos Estados absolutistas das monarquias europeias e que segue até hoje, no protofascismo cristão e conservador que nos envolve (quase substituindo o título de Presidente pelo de Mito).
Ridley Scott continua trazendo referências involuntárias ao épico enquanto gênero. O Coliseu aparece em plano aberto a partir de uma maquete – a forma como a Era de Ouro gostava de fazer para os olhares menos experientes de seu público. Ao abrir o enquadramento, o espectador observa que vemos Commodus, de fato, diante de uma maquete. Ele saca dois pequenos bonecos e simula sua consagração na arena. Na primeira sequência dentro da arena, finalmente, parte do ataque aos guerreiros se dá com as mesmas bigas imortalizadas pela película estrelada por Charlton Heston.
O filme parece evitar a digitalização o máximo que pode e repete a trajetória que usa dramas como o de Judah Ben-Hur e Spartacus, que envolve a recuperação da liberdade e a possibilidade de ascensão social. Porém, no ato final isso não será mais possível. Assim como James Cameron em “Titanic” (1997) três anos antes, as possibilidades modernas de criações audiovisuais são o que justifica a realização de longas-metragens como esse. Contudo, esse período de transição fez com que a narrativa fosse pensada para nos envolver e tornar a falsidade das representações algo divertido ou parte do jogo.
Uma herança de virtude artística do cinema de entretenimento que parece cada vez mais perdida em Hollywood atualmente. Ainda conseguimos refletir pela maneira como Commodus tropeça em seu objetivo de obter popularidade. Em “Gladiador” ele tenta encontrar as decisões que beneficiem a si, ao mesmo tempo em que se alinha com os desejos dos romanos. Um populismo facilmente atacado pela grande oposição que se forma, envolvendo de Senadores a um gladiador que se destaca como uma figura genuinamente associada ao povo. Ou seja, adiciona à oposição um toque de resistência.
Neste conto sobre morte e desonra, em um dos períodos de crise da fase republicana de Roma, “Gladiador” equilibra bem as conexões políticas e o encontro entre herói e vilão que o público tanto esperava. Em um epílogo que se forma ainda dentro da arena, a mensagem que parece querer dar funcionalidade aquela história, quase como uma parábola. Ao derrubar um ídolo instantâneo no palco em que ele se consagrou, de forma vil e cruel, a atitude de Commodus leva os espectadores a refletir, pelo olhar a Maximus, a necessidade de humanizar certas figuras.
Claro, estávamos bem longe de qualquer abolicionismo ali. Entretanto, na fala do Senador, há algo que merece ser entendido até hoje: é preciso acreditar nas instituições, regular os donos do poder – qualquer governante que seja – antes que o banho de sangue seja ainda maior.
Ouça “Now We Are Free”, com Lisa Gerrard: