Taguatinga 2020 | Sessão 08 da Mostra Competitiva

Sessão 08 da Mostra Competitiva

Taguatinga 2020 | Sessão 08 da Mostra Competitiva

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro“, um antigo verso de Belchior, da música “Sujeito de Sorte”, ganhou ares de modernidade nos últimos anos, após ser revisitada em “AmarElo“, que uniu Emicida, Majur e Pablo Vittar. Cooptado por grupos que resistem aos ideários proto fascistas de quem está (ou apoia) em algumas esferas do poder, a discriminação de gênero corre a risco de ser institucionalizada. Não estamos longe, visto que o histriônico lado moralista, a favor da vida (na gestação – e da morte ao menor infrator) já bate ponto em porta de hospital fiscalizando procedimentos autorizados pela Justiça. Como conseguimos errar tanto? Os três curtas-metragens que compõem a Sessão 08 da Mostra Competitiva do Festival Taguatinga de Cinema (completando os 24 postulantes) optam por invisibilizar o opressor. Uma trinca de obras que volta para dentro da comunidade LGBT, para que as bandeiras do movimento tremulem sem intervenção no discurso.

Quase sempre usando a ficcionalidade, as produções tocam em temas delicados, como o conflito entre as religiões hegemônicas que veem alguns de seus líderes promoverem a LGBTfobia e nas altas taxas de suicídio entre pessoas trans – causada pelas mesmas agressões de quem não entende, nem nunca entenderá, o amor de Cristo, que nos une. No meio do caminho, uma oportunidade de recomeço – em um mundo ideal, cheio de açúcar e afeto.


O Caminho

Do Peito a Pele

Do Peito à Pele“, de Keythe Tavares e Rudolfo Auffinger nos propõe um exercício: o que faríamos com Deus, caso ele retornasse à Terra. Um início bem provocador vai transformando seu choque em mensagem. A culpa pelo prazer, muitas das vezes, só acontece quando palavras e atos de violência são sofridos por LGBTs. A ideia aqui não é projetar apenas no divino e sim no mundano. Aqueles que agridem não comungam o sentimento de medo ao sair às ruas, e não sabem o que é a discriminação na tentativa de obter uma vaga de emprego, por exemplo. Não correm risco de morte ao ir a uma padaria comprar o café da tarde.

A montagem dos realizadores se vale de imagens pré-existentes e proposições de condutas, que não param, se empilham. É contundente e nos sufoca, porque é isso que se passa na cabeça de quem vive sob a ditadura do medo. Sua proposta final, de recriação de Deus, é pertinente – visto que as ideias tão deturpadas (por alguns comandantes) do que se entende de justiça e igualdade das religiões cristãs começam a dificultar o acesso ao diálogo. Mas ele precisa existir, mesmo que o momento seja de colocar para fora o que nos angustia.


A Verdade

Abraço

Seguir vivendo, essa é a sentença que “Abraço“, de Matheus Murucci, nos mostra como devemos cumprir. Um mundo perfeito, em que amizade e respeito é a tônica e que sempre podemos colocar mais açúcar no brigadeiro. Uma reunião de confluências, conexões pelo amor. Ainda vemos casos em que o ódio se manifesta na rua, nas redes. Mas entre quatro paredes, há muito espaço para o prazer do encontro. O curta-metragem traz o dia do aniversário de um dos personagens. Conversas sem objetivo, amenidades, o escapismo – ou não – da astrologia… “Abraço” é onde devemos estar sempre que nos sentirmos sozinhos. Sempre que o pessimismo de um mundo que não respeita as formas de amor tomar conta de nós, eles estarão ali, lembrando que novos ciclos sempre se iniciam.


A Vida

Preciso Dizer que te Amo

A Sessão 08 da Mostra Competitiva e, por consequência, o Festival Taguatinga, se encerra com o potente “Preciso Dizer que te Amo“, de Ariel Nobre. A mostra de cinema, que iniciou em modo retrospectiva no mês de junho e transitou pelos meses de julho e agosto, deixa um recado para o Setembro Amarelo que se inicia na próxima semana: Vidas Trans Importam. A poética e a ficcionalidade costuma ter uma força de mensagem que não deixa espaço para a indiferença. É o que esperamos que este curta-metragem provoque. Dividido em três atos, as encenações do elenco, carregada de simbologia religiosa, é um chamado que a sociedade não pode deixar de aceitar.

Na primeira parte, o olhar e o conhecimento sobre os corpos de pessoas trans. Uma descoberta que costuma ser solitária, fruto de um país que não deseja prover auxílio básico sob qualquer aspecto – principalmente educacional e de saúde, tanto física quanto psicológica. Somos uma nação que ficamos no lucro quando nossas questões urgentes são varridas para baixo do tapete, momento em que nós ainda temos a chance de sacudir a poeira e dar a volta por cima, mesmo que sem ajuda oficial. Aqui, em regra, somos sempre confrontados com mais esmagamento, uma opressão carregada de orgulho.

O segundo ato, sob o título “condenado á morte”, traz a dança como representação da exploração do próprio corpo. Outro direito negado a pessoas trans, que não conseguem efetivar sua liberdade plena, como se sua vida fosse – de fato – uma condenação ao olhar de um Estado que não o protege.

O que chama a atenção é que essa condenação acaba promovendo mais amor. Só que as agressões não param e em determinado momento somos indagados: até quando eu aguentarei essa violência? É nesse momento que alguns seguem o caminho do suicídio. Mas “Preciso Dizer que te Amo” traz outra visão, a daqueles que têm medo de ter a vida ceifada – e deixar esse plano de existência sem expressar ou verbalizar o amor. Com isso, o terceiro ato chega, em que a ressurreição vem através da ocupação dos espaços – que devem ser encher de mensagens de amor.

Assim chega ao fim um festival que acompanhou as primeiras semanas da Apostila de Cinema. Tanto no Taguatinga quanto aqui, o caminho seguido é o de fomento ao debate. O Cinema é a porta de entrada, mas pode ser também um pano de fundo. Há diversas maneiras de se pensar o audiovisual e em nenhum momento queremos esgotar análises. Optamos por criar relações com as obras que nos faça entender o que se passa – conosco, com a sociedade, com o planeta. E com o Cinema também, claro. Por vezes as questões são complexas, a produção analisada é densa. Em Taguatinga, por exemplo, passamos por curtas-metragens que se pautavam na informação, no medo, no choque. E ele termina com uma mensagem de amor, a ser distribuído coletivamente. Fica aqui o nosso amor a todos que usam o Cinema, suas mostras e seus espaços de críticas e análises, para abrir o coração e promover um mundo mais empático.


Ficha Técnica da Sessão da Sessão 08 da Mostra Competitiva

Do Peito a Pele (Keythe Tavares e Rudolfo Auffinger, 9″ – 2020, Paraná)
Sinopse: O Cristofacismo, a lgbtfobia e a arte pop LGBTI brasileira são as fontes da colagem que narra, quase de forma litúrgica pelo próprio autor do poema, Francisco Mallmann, as várias alternativas que temos para fazer com Deus, caso ele volte.
Abraço (Matheus Murucci, 16″ – 2019, Rio de Janeiro)
Sinopse: No subúrbio do Rio de Janeiro, um grupo de amigos prepara uma festa de aniversário.
Preciso Dizer que te Amo (Ariel Nobre, 13″ – 2018, São Paulo)
Sinopse: Documentário sobre a resiliência e a luta contra o suicídio entre as pessoas trans. o filme retrata de forma poética a relação dos personagens com o corpo, com a vida e com o sagrado.

Taguatinga 2020 | Sessão 08 da Mostra Competitiva

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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