Taguatinga 2020 | Sessão 04 da Mostra Paralela

Sessão 04 da Mostra Paralela

O cinema já nos levou por caminhos que tornaram imperceptíveis a divisão entre ficcionalidade e realidade. Só que a sociedade, como organismo vivo e em constante movimentação que é, se aliou nos últimos anos às manifestações culturais para nos trazer a distopia como um elemento que não causa mais qualquer estranhamento. Os motivos para esse processo de normalização do insólito são muitos e merecem muito mais do que as mal traçadas linhas deste texto. Na área, passa pelo aumento no acesso aos meios de produção audiovisual, ao entranhamento das técnicas pelos realizadores, à ampliação no consumo de obras e suas ramificações de narrativas. Fora dela, passa pela constante autopromoção, que nos tornou produtores de nós mesmos, que trouxe essa confusão do que somos e do que queremos/devemos ser – e se seguirmos esse caminho vamos para o marketing pessoal, a ditadura das frustrações que potencializa qualquer palavra sensata ao status de guru tecnológico. O que a Sessão 04 da Mostra Paralela do Festival de Taguatinga tem com isso? Muita coisa. Ela está inserida em um mundo onde a câmera é nossa companheira e os responsáveis pelos três curtas-metragens selecionados seguiram caminhos aparentemente diferentes, mas que se valem disso para mostrar como – mais perto do que o absurdo – estamos vivendo dentro dele.


Utópico x Distópico

Linhas Tortas

O filme que abre a Sessão 04 da Mostra Paralela é “Linhas Tortas“, de Flora Suzuki e Grazi Labrazca. Fosse em uma época onde o audiovisual era pensado dentro de caixas, a obra estaria totalmente inserida na experimentação. Agora não é mais, pelo contrário. Direta em seu discurso, nos traz a perspectiva da educação no Brasil, pelo viés da destruição. Os depoimentos do professores retratam uma realidade de desvalorização – antes o passado, onde os mestres possuíam bom nome em cidades menores, eram motivo de orgulho. A remuneração ruim dói, mas percebe-se que a ausência de apoio perante a opinião pública talvez incomode ainda mais.

Uma classe de trabalhadores que nunca debateu horas extras porque ela são inerentes. Não há como ser professor e aceitar que o período em sala de aula – o, de fato, remunerado – é o único em que sua função será desempenhada. Grande parte dos docentes ainda precisam encarar o Estado como patrão. Um chefe que não os vê como essenciais, se compararmos o que paga a eles e a outros funcionários. Argumentos que deveriam ser suficientes para que a sociedade apoiasse os professores em suas reivindicações. Lembrar de como a luta a favor da educação é mal recebida nos grandes centros urbanos brasileiros é o primeiro estalo da sessão do festival sobre os processos distópicos pelo qual passamos.

As cineastas, então, constroem sua obra, de pouco mais de seis minutos, usando o elemento visual para trazer a degradação como palavra de ordem. São prédios destruídos, arames cortados, portões enferrujados que acompanham os lamentos dos professores. Mais do que uma luta antiga, envelhecida, a educação como valor parece estar à beira do absurdo.


Insólito Normalizado

Escola sem Sentido

Escola sem Sentido” de Thiago Foresti já não nos transporta. A obra do meio da sessão (que começa evocando o passando de valorização da educação e terminará no futuro, como veremos) traz uma alemã que – em um tom que mistura a seriedade e o deboche – conta a história de um professor de Ensino Médio que começa a ser filmado em sala de aula por uma aluna – motivada pelos movimentos conservadores liderados pelo atual Presidente da República. Os pais da garota, orgulhosamente anti-educação como logo se percebe, passam a questionar o diretor da escola sobre a metodologia aplicada pelo docente.

A metodologia é contar a História como ela ocorreu. Uma História que não pode excluir de seus livros Karl Marx e Che Guevara para o entendimento do século XX, da Europa à América Latina. Diante da normalização de condutas fascistas em nosso país, o curta-metragem opta por um interessante caminho: colocar uma narradora, de corpo presente, se valendo de outro idioma (chancela que a classe média leitora de legenda adora) para falar o óbvio: estamos a caminho do recrudescimento do fascismo no país. Engessar maneiras como se leciona era o início, mas passamos por um processo de censura prévia via intimidação – mencionar Paulo Freire, como bem diz o curta-metragem, é uma delas. Esse é um ponto de existência que soaria insólito há dez, quinze anos, quando os fascistas estavam apenas varridos para baixo do tapete.

Isso torna a obra de Foresti muito direta, quase didática. Entre duas outras que se valem de simbolismos, a construção narrativa mais clássica com um toque de lição de História faz todo o sentido. Essa mistura de falas e atitudes já presentes na sociedade brasileira, tornam outras – à primeira vistas extremas e até mesmo esdrúxulas – perfeitamente alcançáveis em curto prazo. Mais notável o filme ser fruto de um financiamento coletivo porque a solução para esse inapelável rumo à destruição que estamos seguindo não encontrará seu antídoto no corações e mentes sensatas da nossa individualidade. O diálogo é mais do que necessário e “Escola Sem Sentido” se vale de uma importante provocação, sem metáforas ou tramas fabulescas, para fazer valer seu ponto.


Existência Regressiva

Tecnogênese

Encerrando a Sessão 04 da Mostra Paralela, Coletivo sem nome traz “Tecnogênese“, onde nossa sociedade alcançou os ideias pensados por quem atualmente nos governa. Nela, qualquer direito básico precisa passar por um escrutínio tecnológico, um sistema que amplia os conceitos de burocracia opressora tão bem aplicados no Brasil desde sempre. Aqui a distopia é caracterizada em sua integralidade, nos ambientando em um futuro idealizado a partir das mazelas do presente. Bem parecida com a crueza de representação dos longas-metragens mais recentes de Adirley Queirós, a Brasília do Coletivo tem como heroína Kata, uma professora (claro).

Um início que nos lembrou a abertura de “O Chão sob Meus Pés“, filme austríaco que se desenvolve a partir da chamada Sociedade do Cansaço (pudemos falar um pouco disso na análise e na nossa conversa sobre a obra no Apostila Revisa #003). O Governo controla as ações a ponto de antecipar via SMS quando chegará nossa “aposentadoria da vida”, uma contagem regressiva da nossa existência, vejam só, por um viés positivo. Estamos vivendo para morrer e o Estado não se preocupa mais em esconder isso. Kata faz parte da chamada Cúpula Democrática, um sistema que nega acesso ao que há de mais básico na existência humana a boa parte da população. Ela tentará, então, destruí-lo. A protagonista de “Tecnogênese” quer “bugar” o sistema, o que já fazemos hoje com nossas buscas por exceções que justificam as regras. Quando falamos das dificuldades de ser operador do Direito no Brasil é trazer uma realidade em que a derrota é esperada – mesmo que você esteja convencido de tudo o que merece.

Esses supostos absurdos já são vistos em nossa sociedade. Se navegarmos um pouco pela Apostila de Cinema, por exemplo, veremos obras apresentadas na Mostra Lona em que o direito à habitação – garantido constitucionalmente como fundamental – é negado a troco de nada. Propriedades sem função social encontram cidadãos que se articulam para exercer tal direito e o sistema não os permite serem bem sucedidos em seus intentos. A diferença é que a ampliação das condutas a partir de algoritmos tornará a opressão um mecanismo que se valerá de ferramentas automáticas. O que as obras aqui expostas permitem deduzir é que a Educação já faz parte deste processo, em estágio bem mais avançado do que o bom senso imaginar testemunhar. isso porque o Estado brasileiro sempre foi um algoritmo vivo, com seus magistrados e servidores ali colocados para negar justiça social, sob a desculpa de a promover.


Ficha Técnica da Sessão 04 da Mostra Paralela

Linhas Tortas (Flora Suzuki e Grazi Labrazca, 7″ – 2019, Paraná)
Sinopse: Caminhos e descaminhos de uma profissão degradada. Trabalhadores que procuram fazer florescer em ruínas institucionais.
Escola sem Sentido (Thiago Foresti, 15″ – 2019, Distrito Federal)
Sinopse: Chicão é um professor de História apaixonado pela profissão. quando uma estudante filma as suas aulas e mostra para os pais, a conclusão é o medo de uma suposta doutrinação ideológica. O caso ganha proporções impensadas na escola e afeta a motivação do professor com o trabalho. Enquanto isso, uma mulher misteriosa faz reflexões sobre a situação de chicão dentro da sala de aula.
Tecnogênese (Coletivo Sem Nome, 18″ – 2018, Distrito Federal)
Sinopse: Em uma Brasília distópica, o governo totalitário cria um sistema que restringe o acesso a direitos básicos a boa parte da população. Kata é professora na cúpula democrática, única instituição permitida a dar aulas, até que seus ideais e sua origem a levam a contrariar o sistema.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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