O Chão sob Meus Pés

Chão sob os Meus Pés

Sinopse: O Chão sob Meus Pés conta a história de Lola (Valerie Pachner), uma bem sucedida consultora de negócios que precisa lidar com uma crise da irmã, Conny (Pia Hierzegger), internada após nova tentativa de suicídio. Aos poucos, Lola começa a se questionar o quanto de sua vida é, de fato, um base sólida e quão frágil é o chão sob seus pés.
Direção: Marie Kreutzer
Título Original: Der Boden unter den Füßen (2018)
Gênero: Drama
Duração: 1h 52min
País: Áustria

Chão sob os Meus Pés Imagem

Nosso Sucesso é o Nosso Fracasso

O Chão sob Meus Pés” estava na cara do gol. O longa-metragem dirigido por Marie Kreutzer estrearia no dia 19 de março nos cinemas, uma boa pedida para o circuito alternativo. Selecionado para o Festival de Berlim de 2019 e indicado a melhor filme em sua país de origem, a Áustria (perdeu para “Joy” da diretora Sudabeh Mortezai, que provavelmente se juntará a esse filme na Apostila Cinema Europeu em breve), já havia passado por cabine de imprensa e estava com a publicidade na praça quando os cinemas começaram a fechar uma semana antes. Até por isso era uma das pré-estreias mais esperadas do Festival Espaço Itaú Play.

O filme conta a história de Lola (Valerie Pachner), que na cena inicial abre os olhos com medo, como se acordasse de um pesadelo. Na Sociedade do Cansaço, isso não faz diferença porque, na prática, estamos trocando um pesadelo por outro. No caso da protagonista, que começa sua jornada dizendo o quanto gosta de ver o amanhecer enquanto pratica sua corrida matinal, estamos diante de alguém ainda em deslumbre. Lola passa por um prolífico período de ascensão pessoal e profissional. Trabalha no projeto mais importante da empresa da qual é contratada, enquanto vive um romance empolgante com sua chefe, Elise (Mavie Hörbiger).

Nessa base fundante, era de se esperar que a personagem normalizasse a conduta de sua irmã, Conny (Pia Hierzegger). Não acredita que ela, de fato, esteja tentando se suicidar anualmente – sequer leva fé de que há uma tendência. Mesmo compartilhando com a namorada e conosco bem mais adiante que Conny foi diagnosticada com esquizofrenia paranoica aos 22 anos. Lola mente para si porque é isso que fazemos quando estamos no caminho do sucesso e nada pode nos parar. Os mais atentos, que leram o título do texto, já sabem que sucesso e fracasso podem ser faces da mesma moeda e em um mundo que arde por produtividade (laboral, sentimental, sexual…) o chão sob os pés de Lola será, claro, extremamente frágil.

A cineasta Marie Kreutzer mantém por quase todo tempo de “O Chão Sob Meus Pés” uma dinâmica em sua obra bastante louvável. Um ato curto no início, se encerra assim que a personagem de Valerie Pachner é retirada de sua zona de conforto quando sua irmã tenta lhe avisar que sofre maus tratos na clínica psiquiátrica onde está internada. A partir deste ponto a diretora se preocupará em desglamourizar a vida da ambiciosa empresária. Começa a nos apontar o que em sua rotina não “parece certo”, como aquela pilha de roupas para lavar que adiamos ao máximo porque o mundo depende de nós.

É interessante como Kreutzer permite uma segunda via ao drama, tecendo um thriller sem ambientação. Conny tem uma aura misteriosa por boa parte da projeção, mas esse caminho não vem acompanhado por elementos de gênero, como uma trilha marcante ou uma tensão crescente. Essa escolha é fundamental para que Lola, que chegará a duvidar de sua própria sanidade, tenha argumentos observáveis ao espectador. Não faria sentido nos levar por uma trajetória da personagem se esses elementos externos tirassem o foco e exigissem uma atenção sobre os próximos passos da trama.

Porém, quando essa escolha se impõe, o drama proposto pela diretora (também única responsável pelo roteiro) não se consolida. O filme aborda algumas questões que permitem debates, como a feminilidade de Lola. Uma representante do mundo corporativo presa aos terninhos, aos cabelos presos e ao sapatos altos. Aliás, Kreutzer usa os sapatos da protagonista como um objeto de ligação de toda a história. Ela os coloca, os tira, quebra um salto, compra outro na loja, não os calça em um dia importante… Já na sequência mais forte de “O Chão Sob Meus Pés”, o assédio a partir das palavras de um homem que se vangloria de não assediar fisicamente traz um exemplo de como essa rotina e as demandas exigidas por uma personagem tão complexa quanto Lola poderia render mais frutos.

Perde-se precioso tempo no terço final quando, além de compilar algumas sequências que não avançam na trama e nem suscitam questões como as mencionadas acima, tenta provocar um arco dramático que não se justifica na relação entre Lola e sua irmã mais velha Conny. Não que Pia Hierzegger não entregue um excelente (e premiado) trabalho. Porém, estamos diante de uma personagem que cumpriu seu papel de ser antagonista da outrora vida perfeita da caçula. O desafio já estava em andamento e não era possível ir além – à exceção de uma conclusão já desenhada desde o início.

Mesmo assim, “O Chão Sob Meus Pés” é generoso de bons momentos, grande parte deles quando Lola perde o controle sobre o que está, realmente, sob seus pés. Na melhor fala do filme, a sentença: “ter burnout no mercado de trabalho é como ter lepra”. Forte e verdadeiro. Só não é descartável quem já foi descartado. Pensando bem, não poderia o longa-metragem ser um thriiler. No mundo da produtividade máxima, a vida, mais cedo ou mais tarde, te esmaga sem nenhum suspense prévio.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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