2º FESTCiMM | Mostra No Meio da Noite

2º FESTCiMM - Mostra No Meio da Noite

Os cinco curtas da programação do 2º FESTCiMM | Mostra No Meio da Noite vão além do protagonismo feminino (ou pelo menos a constatação de que partem delas as ações efetivas das obras). Além de uma provocação de se discutir a justiça social e derrubada da opressão, os filmes selecionados para a mostra que se vale dos gêneros de suspense e terror mostram que o audiovisual brasileiro se sente cada vez melhor com essa abordagem. A ponto de dois curtas-metragens adicionarem o elemento musical para tornar ainda mais atraente suas narrativas. A partir de agora falamos um pouco de cada um deles. Não deixem de acompanhar a cobertura completa do Festival nesse link. Segue um índice que nos leva diretamente ao filme em questão:

Ondas
Mamãe tem um demônio
Onze Minutos

Em Cima do Muro
Pelano!

Ondas
(Gugu Seppi, 2019)

O 2º FESTCiMM | Mostra No Meio da Noite se inicia com “Ondas”, de Gugu Seppi. O primeiro curta-metragem já se pauta na inversão da lógica da opressão masculina e da representação da mulher como a vítima indefesa. Estrelado pelo experiente Zé Carlos Machado (que na televisão sempre transitou entre a vilania e o bon vivant), usa esse rosto conhecido para induzir o espectador. Ele é um homem solitário abalado pela perda de quem o acompanha no porta-retrato didaticamente focado por Seppi. Vagando de casa para a rua sem encontrar muito sentido na socialização forçada, ele gosta mesmo é de controlar a vida da vizinha da porta ao lado.

O que ele vai fazer é tentar dominar, literalmente, as ações da mulher – em uma espécie de “sequestro afetivo”. Típico terror de apartamento, segue o caminho do clichê propositalmente, como se estivéssemos presenciando uma Síndrome de Estocolmo instantânea. No clímax, nos revela que essa sessão do festival passará longe do reforço de estereótipos. 

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Mamãe tem um Demônio
(Demerson Souza, 2019)

Mamãe tem um Demônio” é a primeira das duas obras que insere o elemento musical (ainda de leve, como transição narrativa) aos insólitos ficcionais que compõe essa mostra do festival. Demerson Souza nos transporta para os anos 1990, onde Beni é uma menina admira pela TV Tete Barilove, uma cantora que se apresenta sempre seminua, elemento objetificante que tanto fez sucesso por aqui à época. A referência à cantora Gretchen seria confirmada com um elemento da direção de arte mais adiante. O mote da trama, porém, é ainda mais interessante.

Quase em comoriência a menina vê seu ídolo e a própria mãe morrerem quase que de maneira simultânea. A dupla perda das referências femininas geraram um trauma que terá como consequência a má relação com a filha no futuro.

Porém, um livro de magia negra permitirá, trinta anos depois, que a Tete seja conjurada por Beni em sua residência. A materialização de um espírito vingativo de quem, aparentemente, conseguiu se desconstruir mesmo após a morte – superando boa parte dos membros de uma sociedade conservadora, retrógrada e machista.

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Onze Minutos
(Hilda Lopes Pontes, 2018)

Onze Minutos” foi um dos curtas-metragens mais importantes na minha reaproximação com o cinema brasileiro, sob uma perspectiva de um audiovisual brasileiro pulsante que se ergue nos festivais, com múltiplas estéticas e linguagens. Assistido no final de 2018 em um curso, se valeu para debater os elementos de gênero como ferramenta não somente de subversão (isso o cinema faz há décadas) – mas de aprofundar o debate sobre a opressão.

Hilda Lopes Pontes constrói uma história a partir do dado estatístico de que a cada onze minutos uma mulher sofre violência no Brasil. A protagonista, no entanto, sofre diversas violências nesse período – sendo a mais aguda reflexo de um processo sufocante que a narrativa constrói. O terror social (como Roberta Mathias gosta de classificar) é clássico, desde a aparição dos créditos com o nome do filme. O vilão é o típico homem que se entende desconstruído e se vangloria de ser um cara compreensivo e de família.

Há, até certo ponto, uma troca, uma cordialidade que não deveria gerar nada mais do que bem estar entre pessoas. Gentilmente, duas pessoas falam sobre si despretensiosamente em uma conversa forçada, já que eles precisam dividir aquele espaço por alguns minutos. Só que quando estamos falando de um homem e uma mulher, algo aparentemente corriqueiro se torna perigoso – pelo simples fato da situação criada gerar a vulnerabilidade.

“Onze Minutos” volta a mim ainda melhor, pois a partir dele pude ir a fundo no que se produz no país e não me arrependi. Sua conclusão em que o elemento da monstruosidade se materializa, com a sororidade como o grande bicho-papão destruidor da opressão vem em um corte seco tirar o fôlego do espectador.

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Em Cima do Muro
(Hilda Lopes Pontes, 2019)

Na sequência da sessão outro filme da multipremiada Hilda Lopes Pontes (que também é idealizadora e coordenadora da Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, criada em 2017). Em “Em Cima do Muro” a cineasta se vale do mundo opressor das redes sociais. Emulando o seriado “Black Mirror“, imagina um aplicativo (realmente satânico) em que todas as nossas redes sociais se concentrariam.

Esse é o segundo curta-metragem selecionado para a Mostra No Meio da Noite que usa o musical como um segundo gênero a se juntar ao terror. Só que aqui ele possui grande relevância na narrativa – e o faz de maneira genial. Um mundo em que a depressão pós-stories revela uma crescente de ansiedade, causada pela dificuldade em negarmos essa socialização. Seguindo mais pelo caminho do deboche, tem verdadeiras músicas-chicletes. Vida longa a Olho de Vidro Produções da Bahia, onde Hilda – ao lado de Klaus Hastenreiter, já nos possibilitou quase duas dezenas de produções.

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Pelano!
(Chris Mariani, 2019)

Chris Mariani escreve, dirige, produz e estrela “Pelano!”, um curta-metragem que encerra a sessão da Mostra no Meio da Noite dialogando com questões maiores e menores da semana em que o Festival de Cinema do Meio do Mundo aconteceu. Pensando muito antes da pandemia de Covid-19 se tornar realidade, o filme repensa o espaço urbano do nordeste brasileiro a partir um fato improvável, porém não impossível. Na trama da cineasta o desmonte das políticas ambientais do governo de Jair Bolsonaro alcançaram um nível de “sucesso” que um gigante e irreparável buraco na camada de ozônio torna impossível o contato com a luz sola durante o meio do dia – sob pena da pessoa pegar fogo.

Interessante assistir a essa produção justamente na semana em que o agronegócio, tão bolsonarista em sua maioria, começa a se incomodar com os reflexos do aumento do desmatamento nos negócios internacionais. O Brasil, sendo visto como um pária, parece não comportar mais Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente. Já a outra questão – bem maior – é aquela que fez o audiovisual se tornar uma linguagem virtual: o isolamento social. Chris Mariani antecipa a reação do povo, que em sua obra recebe a recomendação de não sair de casa (pouco difundida pelo Presidente, que prefere ficar tuitando) pelo risco de combustão espontânea. O que acontece em “Pelano!” é de se esperar do espectador que nos últimos quatro meses testemunha o quão falhas foram as medidas de contenção do coronavírus em nosso país. A sessão do 2º FESTCiMM – Mostra No Meio da Noite termina com mais uma narrativa feminina, uma que foi pensada como quase absurdo e se tornou reflexo dos novos tempos.

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Ficha Técnica da Sessão
2º FESTCiMM | Mostra No Meio da Noite (Edição Garanhuns)

Ondas (Gugu Seppi, 15min – 2019)
Sinopse: Após a morte de sua esposa, Paul se vê preso em um mundo onde a única conexão estabelecida é por ondas eletromagnéticas, assassinando relacionamentos interpessoais. Paul quer se libertar da solidão, até que finalmente conhece Sofia.
Mamãe tem um demônio (Demerson Souza, 25min, – 2019)
Sinopse: Nos anos noventa, Tete Barilove é a cantora mais sexy do Brasil. Embala hits e ultrapassa até mesmo artistas como Gretchen. Tudo isso, até ser encontrada morta, o motivo – “atirou na cabeça”. Trinta anos depois, seus fãs ainda se perguntam sobre seu suicídio. Uma delas é Beni. Numa noite, voltando do trabalho, Beni descobre o que aconteceu com Tete.
Onze Minutos (Hilda Lopes Pontes, 17min, – 2018)
Sinopse: No Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é violentada. Elisa precisa ir ao aeroporto. É noite e, no caminho, obstáculos vividos por quem é mulher.
Em Cima do Muro (Hilda Lopes Pontes, 14min – 2019)
Sinopse: Deprimida, Amélia não consegue sair de casa. Ela tenta então ser alguém na Internet.
Pelano! (Chris Mariani, 12min – 2019)
Sinopse: Um buraco na camada de ozônio se abre em cima da região nordeste do Brasil. Em meio a isso, Raquel está derretendo.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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