Cavalo

Cavalo

Sinopse: Envolvidos num processo artístico, sete jovens dançarinos são provocados a um mergulho em suas ancestralidades.
Direção: Rafhael Barbosa e Werner Salles
Título Original: Cavalo, 2020
Gênero: Experimental
Duração: 1h 25min
País: Brasil

Cavalo

O Poder da Criação

Cavalo” abriu o Festival Ecrã 2020 para a Apostila de Cinema. Sem janelas de exibição engessadas ou recortes específicos, a liberdade da linha curatorial da mostra nos deu total poder de escolha. O longa-metragem de Rafhael Barbosa e Werner Salles, então, era o caminho mais seguro na busca por temas que dialogassem com nossos interesses. Exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes deste ano, estamos diante de um filme que fala da criação – em mais de uma forma de se pensar este ato.

A forma mais direta de visualizar esta manifestação se baseia nos créditos iniciais. Contextualiza a forma como a Humanidade foi criada nas religiões de matrizes africanas, em especial o Candomblé e a religião iorubá. Seguindo uma maneira de narrativa audiovisual que vem tomando cada vez mais espaço na produção nacional, une as diversas formas de expressão corporal, da dança contemporânea, ao break, um dos elementos da cultura hip hop. Um prólogo que une a mitologia de Oxalá e Olorum – que entenderam ser o barro a melhor matéria-prima para a criação do ser humano, até o clássico gestual do batismo cristão – de outra mitologia, há muito incrustada na sociedade brasileira.

A quebra de expectativa de “Cavalo” vem logo depois. Interrompe um caminho que poderia ser único, um grande exercício de movimentos e danças carregados de simbolismo – para tratar de outra forma de criação. Nos transporta para um tablado, onde o elenco documenta a origem da própria manifestação artística. Fora da região de mangue, olhando em perspectiva, assistimos a relatos do poder da dança, que nos concede força e confiança. É o poder da recriação, da transmutação de si mesmo. A arte nos permite extrapolar os limites que nós entendemos ter. O filme de Barbosa e Salles tem essa constante inquietude, esse desejo de não parar, de não ser monotemático. Há uma linha usada como guia, de exploração da corporalidade – mas dentro dela não há freios para as linguagens possíveis.

Tanto que o sincretismo religioso surge em mais de um momento. Em um deles, de aparente representação semi-ficcional, o filho sai de seu banho de folhas e deita no colo da mãe no sofá. Com eles, ouvimos uma música gospel e que Jesus nos ama. Sim, ele também ama a nós. Um dos poucos momentos em que não há contato com a água – apesar da relação com a vida se manifestar da forma mais primitiva, com a cabeça no ventre da própria mãe. “Cavalo” tem essa forma múltipla de pensar no poder da criação. João Nogueira, em música que leva este nome, fala da luz que chega de repente e acende a nossa mente. Da força maior que nos guia. Que está no ar.

Uma das possibilidades do Cinema é trazer uma possibilidade construção de novos sentidos para a canções que não foram pensadas para se coadunar com aquelas imagens. Quando, ao final da jornada, Esú de Baco Exu do Blues ganham a tela, todas as engrenagens mitológicas, endeusantes, ancestrais e corporais são materializadas na música. Uma letra que chama para si a pecha de uma sociedade que vê no corpo negro um objeto de medo, ferramenta para exercitar seu racismo velado. Metade homem, metade Deus, ele diz.

E o ar do longa-metragem, eleito propositalmente como abertura do Ecrã, é carregado de novas possibilidades e de vida. Ao mesmo tempo, inspirada na ancestralidade. O ar e a água e tudo o que nos move. Em determinado ponto somos confrontados com esta pergunta: o que nos move? O que nos faz levantar todos os dias pela manhã (ou pela tarde, para aqueles que perderam o rumo do relógio)? O que nos faz sair de casa? Ou não, já que há quase seis meses muitos de nós deixamos de fazer este processo, a não ser para necessidades básicas. As mesmas questões que nos levam a escolher – e com essa escolha, criar. Essa mal traçadas linhas é uma criação também.

O sincretismo de “Cavalo” não é apenas religioso, é também cinematográfico. Não se prende às convenções narrativas e também no entendimento do que seria: documental, experimental, ficcional, musical. Depois que o filho ouve o quanto Jesus lhe ama, alguém divide conosco o desafio de transpor para seu corpo o ideal de criação cristã, aquela que uniu Adão a Eva. Uma filha de Oxum tenta compreender a si, sua identidade e dali em diante o filme realiza trocas mais longas. Tanto no som, quanto nas imagens, um esplendor sóbrio que nos leva à noite de Maceió.

Uma cidade, assim como todo território urbano, em que o poder da criação da Humanidade se sobrepôs a tudo o que a Natureza lhe forneceu anteriormente. Pouco além da chuva que lava todo aquele concreto sobrou para contar a própria história. Por sinal, trata-se da primeira produção realizada com edital da Prefeitura de Maceió. Não teria como ser melhor o resultado, que seja esta também a criação de uma cena alagoana cada vez maior no audiovisual brasileiro.

Na última semana, a Apostila de Cinema vem cobrindo a Mostra Ecofalante de Cinema – com uma seleção de documentários mais tradicionais, que falam do outro lado da Humanidade: o poder da destruição. A água lá é commodity, aqui é refúgio. Quando chega o Festival Ecrã, para nos libertar de qualquer amarra de gêneros e pensar o Cinema em uma proposta mais ampla, ele nos entrega logo de primeira “Cavalo“. Uma obra que busca na ancestralidade a chave para o portal que esperamos por mais de um ano voltar a atravessar. Se não no carpete histórico da Cinemateca do MAM, nos ecrãs particulares de nossas casas.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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