Miss Marx

Miss Marx Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Brilhante, inteligente e livre, Eleanor é a filha mais nova de Karl Marx. Ela está entre as primeiras mulheres a vincular feminismo e socialismo, e participa ativamente das reivindicações das trabalhadoras pelos direitos das mulheres e pela abolição do trabalho infantil. Em 1883, porém, Eleanor conhece Edward Aveling e sua vida é destruída por uma apaixonada, mas trágica história de amor.
Direção: Susanna Nicchiarelli
Título Original: Miss Marx (2020)
Gênero: Drama Biográfico
Duração: 1h 47min
País: Itália | Bélgica

Miss Marx Crítica Filme Mostra SP Imagem

Entre Pensar e Fazer

Miss Marx” consolida Susanna Nicchiarelli como uma das cineastas mais celebradas do momento pelo tradicional Festival de Veneza. Apresentado na mostra competitiva deste ano (que aconteceu presencialmente entre a primeira e a segunda onda europeia da pandemia do coronavírus), foi o vencedor do FEDIC Award, um prêmio concedido pela Associação Italiana de Cineclubes. O filme, parte da seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, conta a história de Eleanor Marx (filha de Karl Marx) e tem um importante viés de biografia didática. Ancorado em uma personagem que – carregando o legado do importante sociólogo e filósofo e vivendo a transição para o século XX – suscita várias questões relacionadas principalmente à desigualdade de gênero. Mesmo sendo justificável o prêmio, já que estamos diante de uma obra moldada para o debate, ao tentar abarcar o máximo de frentes possíveis, o longa-metragem acaba se desencontrando em unidade.

A protagonista, que tinha o apelido de Tussy, discursa no funeral do pai em 1883 – aos 28 anos de idade. O filme a acompanhará pelos quinze anos seguintes, em quatro momentos distintos de sua vida. Mesmo com uma produção impecável, digna de filmes de época e seus figurinos vistosos, caímos aqui em um equívoco parecido com a proposta narrativa de “O Jovem Karl Marx” (2017), de Raoul Peck. Ao tentar adicionar à experiência do espectador um pouco do legado ideológico da protagonista, segue uma linha comum a biografias de pensadores: desenvolve sequências de discursos descontextualizados, quase transformando a obra em uma espécie de aula de ciências humanas dramatizada.

Em “Miss Marx” temos duas curiosas linhas de formação da personalidade de Eleanor, o que por si só já seria o suficiente para tornar claro seu desenvolvimento do pensamento. A cena inicial, ao trazer a relação de décadas entre seus pais, se reflete mais adiante em uma sociedade que não consegue mais comportar a necessidade de dissolução de corpos quando o sentimento de afeto chega ao fim. O século XIX trouxe não apenas essa, mas outras demandas. O caminho para o sufrágio feminino e a reivindicação de melhores condições aos trabalhadores das fábricas são alguns exemplos. A personagem participava ativamente de todos esses processos, que surgem na construção da trama como elementos acessórios, colocados na mesma balança com a história paralela envolvendo Friedrich Engels. Escolha que tem o objetivo reforçar um ponto de afetação da misoginia aos dois grandes formadores dos ideários socialistas, mas que – no conjunto do longa-metragem – nos leva a outro ponto capaz de nos desconectar daquela narrativa fundamental.

Não há nenhum problema em Nicchiarelli fazer essa opção. Todavia, ela não segue a fundo as próprias convenções de seu filme. Romola Garai, intérprete de Eleanor, transita por algumas sequências sem que nenhuma das questões que afetam sua personagem perdurem a tempo dela projetar toda a frustração causada pela desvalorização e invisibilização de si. Por sinal, a origem dessa ausência de pertencimento ao jogo político é apontada de forma aleatória na história, quando ela relembra como seu pai nunca a deixou desenvolver de todo seu academicismo e ativismo político. Ela se reencontra com essas formas de expressão ao seguir o caminho da militância.

Contudo, “Miss Marx” não transforma essa otimização identificada ao centrar em um intervalo de tempo menor em dinâmica narrativa. Parece sempre olhar para o lado e se envolver demais com pontos que saem do foco. O resultado é um filme que, por vezes, estaciona. Faz a protagonista verbalizar suas conclusões a todo o instante, como quando – quase uma década após a morte do pai – ela finalmente compreende a forma de agir de sua mãe. A cineasta chega ao exagero de ignorar a proposta formatada por ela no primeiro terço do longa-metragem fazendo uma quebra de quarta parede (auge do momento “aula de sociologia”) que parece estar ali para contemplar uma complexidade da protagonista que não conseguimos alcançar nas longas cenas que se sucedem. Inúmeras concessões de linguagem que, sabendo do risco de utilizá-las, não funcionam bem.

Nem todas essas concessões são falhas, por óbvio. Eleanor foi uma importante tradutora para a língua inglesa e ao abordar essa faceta o filme encontra seu momento mais criativo. Ao invés de uma piscada exagerada para o público (como na cena mencionada acima), Susanna Nicchiarelli nos coloca dentro de uma representação de “Casa das Bonecas“, importante peça de teatro do norueguês Henrik Ibsen. Com Tussy e seu companheiro Edward (com quem vivia uma relação de concubinato) interpretando o texto, por um momento somos levados a acreditar que o debate sobre a exclusão feminina da sociedade se baseava em um diálogo real entre eles. Uma maneira de trazer a máxima de que “a vida imita a arte” de forma lúdica dentro do filme, de fato, notável.

Até mesmo sua intenção de aproximar a personagem dos primórdios do movimento punk, que em meados dos anos 1970 aplicava a seu modo alguns preceitos socialistas (com a preocupação moderna do acolhimento feminino), se transforma em uma ótima oportunidade perdida. A ideia da rebeldia motivada e que escapa do arroubo juvenil faz ainda mais sentido se pensarmos que Eleanor passa pelos Estados Unidos, onde já desmistificava a ideia de “land of the free” aos operários e, assim como o ritmo musical contestador um século depois, encontrou em Londres sua capital. Todavia, tais momentos inspiradores não se sustentam e talvez “Miss Marx” seja o clássico exemplo do debate sobre a diferença entre a boa temática não necessariamente gerar uma grande obra.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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