Stardust

Stardust Gabriel Range Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Em 1971, David Bowie é um jovem de 24 anos que viaja até os Estados Unidos para promover seu mais novo disco, The Man who Sold the World. Deixando para trás Angie, sua esposa, grávida, ele e sua banda embarcam em uma turnê improvisada de costa a costa do país. Pelo caminho, o artista se depara com um público que ainda não está pronto para o que ele representa. Durante essa atribulada viagem, Bowie aos poucos começa a perceber a necessidade de se reinventar, para se aproximar verdadeiramente de si mesmo. É a partir dessa percepção que surge seu icônico alter ego celestial Ziggy Stardust.
Direção: Gabriel Range
Título Original: Stardust (2020)
Gênero: Drama Biográfico
Duração: 1h 44min
País: Reino Unido

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Vertentes de Si Mesmo

Stardust” passou pela 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo curiosamente sem fazer o barulho que se esperava. Talvez uma forma de constatação que a formação de plateia ainda é um caminho longo a ser percorrido por eventos desta natureza no Brasil. Basta lembrar que, durante a janela de exibição, foi divulgado um trailer – que obteve milhares de visualizações no YouTube (deixamos ao final da crítica) e gerou uma enxurrada de compartilhamentos de portais de cinema mais populares, usando a figura de David Bowie (e a intrigante caracterização de Johnny Flynn) para alavancar seus acessos em um momento de crise do cinema comercial.

Dito isto, a forma como a obra se vende, na esteira de sucessos de cinebiografias de dinossauros do rock como “Bohemian Rhapsody” (2018) e “Rocketman” (2019), pode gerar certa decepção do espectador-médio. Estamos tratando de um longa-metragem quase anti-musical aqui, que une as possibilidades de existências de Bowie e as concentra no ano de 1971, elevado a período de renascimento (ou transmutação, já que estamos falando de um camaleão). Não autorizado pelo artista em vida, a história foca no período em que ele já fazia sucesso na Europa, principalmente com o álbum “The Man Who Sold the World” (lançado no ano anterior e que tinha, entre outras, a clássica Space Oddity). Uma experiência que faria Bowie construir a persona de Ziggy Stardust, um alterego que uniria o expansionismo de Iggy Pop com a introspecção folk de Lou Reed, uma proposta ideal para o que o artista queria atingir naquela fase.

O filme acompanha a tentativa de ampliação do alcance do cantor em uma turnê quase mambembe pelos Estados Unidos. Alto investimento de uma gravadora britânica que esperava repetir a onda da invasão britânica da década anterior, os resultados medianos não agradavam a Mercury, holding dos Estados Unidos que apostava em Bowie. A cena inicial de “Stardust“, que traz a chegada do artista no aeroporto ianque, mostra um pouco como a sociedade conservadora norte-americana, decerto, o ignorava. Desconhecimento, deboche sobre sua androginia e figurinos desprendido de gênero. Uma discriminação ao mesmo tempo mais velada, todavia guiada pela desinformação.

Só que o diretor Gabriel Range não quer se pautar em pontos com o momento atual ou até mesmo recortar o longa-metragem para que ele se torne highlights da carreira de Bowie – ou de parte dela. Há uma busca por tratar da personalidade do cantor, que se depara com um viés desglamourizado de seu ofício. O agente Ron Oberman (Marc Maron) não o recebe como rockstar e ainda passa parte do tempo o questionando. Isso faz com que o protagonista reflita – e é essa reflexão o elemento mais atraente da produção.

Se em “Não Estou Lá” (2007), o cineasta Todd Haynes ampliou as possibilidades de ler a vida de Bob Dylan, aqui o desapego à realidade é diferente. Poderíamos até cair nos mesmos expediente deste excelente filme citando, que trata deste outro grande nome da música em uma mistura de lirismo, quebra de espaço-tempo e múltiplas personalidades materializadas em pequenas histórias dentro do filme. Aqui, Bowie é camaleão sem alterar sua cor. Suas criações e conclusões são fruto de um mergulho intimista, por vezes inalcançável ao espectador. É anticlimático imaginar que “Stardust“, dentro de tudo o que poderia atingir na biografia de um gigante, opte por mostrá-lo como alguém ainda em formação.

É como ver um jovem Sherlock Holmes ou John Lennon, para citar dois grandes expoentes britânicos – reais e ficcionais – que tiveram trajetória parecida no cinema (“O Enigma da Pirâmide” de 1985 e “O Garoto de Liverpool” de 2009). Sem descambar para o drama (o segundo caminho natural quando se abandona as montagens ligeiras e as músicas de sucesso como condutoras da narrativa), assistimos à gestação do cantor. Há uma clara negligencia em seu relacionamento, motivada pelo desejo de alcançar uma carreira bem sucedida. Seu irmão, Terry Burns (Derek Moran), diagnosticado já naquela época com esquizofrenia, tiraria a própria vida em 1985 – um drama também pouco explorado. Respeitosamente, extrai-se dele a relação direta com aquele momento da vida do protagonista. O que parece importar mais é como Bowie atingiria sua magia. Um artista de seu quilate deve ser ou interpretar uma persona pública?

Chegar a um entendimento (ou a uma vertente de si) sempre é mais difícil em situações como a do filme de Range. Estamos diante de uma pessoa em crise, que precisa ignorar que as promessas que lhe fizeram foram falsas. Porém, entre furadas e decepções, tudo o que David passa é parte de um aprendizado. Há momentos em que a sobriedade na condução faz o texto perder força. Se evita tanto a transcendência aqui, que observa-se que a visualidade não se sustenta todo o tempo. Isso faz com que trechos de “Stardust” demande uma verbalização que faz com que algumas cenas sejam pequenas sessões de terapia maquiadas em diálogos.

Porém, uma característica que não deve afastar quem estava envolvido desde o início na trama. E, da mesma forma, não será a grande vilã daqueles que procuravam uma diversão mais escapista ou algo mais arrebatador ao se programar para ver “aquele filme do David Bowie”. Diante de um artista que flertava com o abandono da carreira justamente por não entregar o entretenimento que a indústria fonográfica esperava dele, não faria sentido resgatar o 1971 do cantor de forma festiva. 1972 e as aranhas de Marte chegariam e agora cabe ao espectador curioso preencher a sua lacuna de carência do camaleão.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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