24ª Mostra Tiradentes | Mostra Foco | Série 2
Fantásticas Possibilidades
A segunda sessão da Mostra Foco da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes nos traz quatro obras que carregam com si um sentimento de fantasia. Essa palavra em seus mais diversos significados. Há em todas elas uma percepção sobre algo fora do lugar, que não se materializa ou não se concretiza, mas parece dominar as ações.
Há também um elemento que os vincula, o do abandono. Ou, melhor, o que deixamos para trás junto com alguns aspectos de nossas vidas – sejam baseados em decisões ou por força das circunstâncias.
A sessão se abre com “Ratoeira“, curta-metragem dirigido por Carlos Adelino. Nele o musicista Neném Maravilha vive Macgyver. O protagonista é conhecido por consertar e resgatar antigos equipamentos. Entre objetos antigos, muitas vezes, desfigurados, Macgyver passa grande parte de seu dia.
O filme tem uma delicadeza medular. Ainda que apareça de maneira efêmera entre um aparelho e outro, nomeado de acordo com o dono ao qual pertence ou pertenceu, Adelino nos mostra pedaços de passados que ainda residem nesses equipamentos.
Acaba, assim, por personificar os objetos fazendo com que imaginemos suas histórias, tempos e passagens até chegarem à oficina de Macgyver.
O curto filme traz ainda a questão residual dos objetos que abandonamos no mundo e para onde eles irão. Nossa protagonista vive nesse mundo daquilo que um dia foi, mas que hoje não passa do que sobrou.
Do abandono de objetos, falemos do que deixamos para trás quando ganhamos o mundo e nos afastamos de nossas família e amigos. “De Costas pro Rio” revela outras camadas por trás da narrativa do homem que tenta salvar Manaus do ataque da Cobra Grande.
Caruso, canção de Lucio Dalla, parece ser entoado no Teatro Amazonas, dublado por um indígena. O filme seguinte traria essa colonização perene, que parece insuperável, do Brasil, verbalizada escancaradamente. O diretor Felipe Aufiero, entretanto, se despede da floresta e foca nos aspectos urbanos do território. Seu protagonista almeja traçar uma historiografia – sem se importar o que, de fato, será real nos depoimentos.
Essa reconstituição que flerta, ou até mesmo assume, o fantasioso é bem mais presente no cinema do que algumas obras permitem admitir. Apesar de “De Costas pro Rio” perder um pouco o foco ao abarcar múltiplas possibilidade narrativas (do drama familiar ao realismo fantástico com o reencontro com um ex-governador de Manaus), é na relação do personagem com sua mãe que há um aspecto de grande interesse.
Isso porque, por mais que retornemos a lugares e para pessoas que antes habitávamos ou convivíamos, nunca voltamos ao ponto de onde paramos. Há coisas que ficam pelo caminho e entender que elas se foram ou se transformaram de forma irreversível é fundamental para encontrarmos a paz interior. Tanto nos territórios quanto em nossas relações.
Isso nos leva ao terceiro curta-metragem, “Eu Te Amo, Bressan“, de Gabriel Borges. Aqui nosso protagonista é o condutor das ações, em uma espécie de “filme dentro do filme”.
Uma narrativa curitibana, que aproveita alguns dos bonitos e arquitetonicamente traçados espaços dessa cidade. O cineasta apresenta uma produção que dialoga com o indie e o experimental, subvertendo essa lógica referencial dentro da própria obra. Isso porque, em determinado ponto, o que parecia quase assumir uma ode à nouvelle vague se transforma em uma verbalizada crítica ao “cinema colonizado brasileiro” (nas palavras de Bressan).
Ou seja, todas aquelas ferramentas de montagem, a construção baseada nas aliterações visuais e na provocação através de sequências onde a busca pelo elo narrativo parecia ser o objetivo, cai por terra quando Gabriel direta e propositalmente as desvirtua.
Aos poucos “Eu Te Amo, Bressan” vai nos colocar diretamente no debate sobre o fazer artístico. Mergulhando no fantasioso, o protagonista quer reconstituir sua história de amor criando uma espécie de Matrix Heteronormativa. “Eternizado pelo padrão“, ele diz. A recriação de histórias através de arte tem disso. Na busca por anseios de um público hipotético, admita-se deturpações em nome de uma liberdade criativa que, por vezes, padroniza seu discurso.
Até que chegamos a “4 Bilhões de Infinitos“, de um realizador que sabe como poucos usar as ferramentas do fantástico para trazer representações de um território. Marco Antonio Pereira encerra a sessão para falar do abandono da inocência. Com uma narrativa que nos deixa em suspendo, a Apostila de Cinema assistiu pela primeira vez ao curta-metragem no 48º Festival de Gramado. Não há muito o que acrescentar, já que todos os aspectos que vincula o filme aos seus companheiros de sessão foram ali abordados (deixamos, então, esse link com acesso direito ao texto original).
Não precisamos reiterar que a qualidade e a pluralidade das produções de Tiradentes, em especial da Mostra Foco, tornam até inviável a comparação. Ainda bem que não somos nós que teremos que apontar merecedores de prêmios, porque é uma difícil missão. Toda a complexidade de questões – de povo, território, raça, gênero, idade – chegam em mais uma grande série, confirmando que o audiovisual brasileiro contemporâneo, parafraseando a definição da famosa rede de televisão, é fantástico!
Ficha Técnica Mostra Foco | Série 2
Ratoeira (Carlos Adelino, 10′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Dentre os resíduos da sociedade de consumo, o técnico em eletrônica Macgyver (Neném Maravilha) descobre um mundo tão cheio de coisas e tão vazio de sentidos.
De Costas Pro Rio (Felipe Aufiero, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Após o contato de um espírito da floresta, Pietro volta para Manaus para salvá-la. Ele deve evitar que a cidade seja destruída por uma Cobra Grande que dorme nos subterrâneos da região.
Eu Te Amo, Bressan (Gabriel Borges, 17′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Depois do fim de seu namoro, Bressan remonta episódios de seu relacionamento em uma inusitada história de amor.
4 Bilhões de Infinitos (Marco Antonio Pereira, 14′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Brasil. 2020. Uma família vive com a energia de casa cortada. Enquanto a mãe trabalha, seus filhos ficam em casa conversando sobre ter esperança.
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Assinam o texto:
Roberta Mathias: Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia – Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas)
Jorge Cruz: advogado desde 2009, graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e escreve sobre cinema desde 2008.
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