Sinopse: Em “A Candidata Perfeita”, Maryam é uma jovem e ambiciosa médica saudita. Apesar de suas qualificações, ela tem que conquistar o respeito dos colegas e pacientes do sexo masculino todos os dias. Uma confusão a faz concorrer a um cargo municipal e ela desafia a comunidade conservadora para provar que é a candidata perfeita.
Direção: Haifaa Al Mansour
Título Original: Die perfekte Kandidatin | The Perfect Candidate (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 44min
País: Arábia Saudita | Alemanha
As Portas e Janelas dos Homens
Há um ditado no Ocidente – e que não saberia dizer se existe um paralelo em outras culturas – de que, quando se fecha uma porta, Deus (a figura de autoridade e criador de tudo e todos) abre uma janela. “A Candidata Perfeita“, representante da Arábia Saudita na versão online e televisiva do Festival do Rio 2021, mostra que não é bem assim. Dinâmica e lógica são expressões que o Criador não tem responsabilidade, é típica construção social, fabricação dos homens. O filme dirigido por Haifaa Al Mansour traz um recorte de território bem distante de nossa realidade, mesmo que com implicações que reproduzem de forma paralela certas leituras. Se torna, então, mais um dos ótimos dramas disponíveis no evento.
Em nossa gravação na noite de ontem do Apostila Festivais, eu e Roberta Mathias subvertemos a premissa do programa justamente nesta obra. Minha parceira de Apostila de Cinema assistiu, mas não escreveu sobre. Lá ela expõe seus motivos, que não serão replicados aqui – entre outros motivos – pelo plano capitalista e empreendedor de “redirecionar” nossa audiência. Porém, parte desta opção diz respeito às mensagens que a obra traz. Nenhuma delas é nova e nossa visão estrangeira e (atrairei para mim a palavra, Roberta) superficial, impossibilita uma visão mais acurada do que ocorre ali. Uma crítica que traz a fina capa da aplicação de linguagem e estética audiovisual a uma temática que não nos diz respeito. Uma outra construção social de autoridade que já se mostrou envelhecida, contraproducente e incapaz de atingir seus objetivos. No bom português: todos nos odeiam, seja fugindo do debate ou problematizando os discursos.
Porém, vale o registro de que “A Candidata Perfeita” é uma das principais produções dos últimos anos em que o protagonismo feminino não soa deslocado, aplicado a uma convenção de Cinema criada para colocar nossos pensamentos em caixas. Na história Maryam (Mila Al Zahrani) é uma médica residente do centro médico Al Hana. No único pronto-socorro da região, ela não se conforma com as dificuldades de acesso da rua sem pavimentação, o que pode tornar mais difícil atendimentos e salvar vidas. Inserida em (mais uma) sociedade misógina, ela precisa resgatar os juramentos de quando recebeu seu diploma de seu nobre ofício. Isto porque, logo no início, um senhor não aceita ser atendido por uma mulher. A única capaz de ajudá-lo e que prometeu fazer incondicionalmente.
A cineasta aplica uma convenção cada vez mais perene no audiovisual moderno. Em cenas como esta, de senso de urgência, uma câmera documental – dentro da ação. Desfolhando a narrativa, Mansour nos leva para a casa de Maryam de modo observatório. Todavia, nada muito excessivo. Não há tempo para contemplações porque temos uma protagonista disposta a agir, ocupar e atravessar qualquer porta ou janela que os homens deixarem abertas, à revelia do Criador e seus reprodutores. Ela não consegue viajar para um encontro profissional, porque seu documento de identificação venceu e ela precisa que seu guardião (no caso, o pai) providencie a renovação. Este, por sua vez, não se volta contra a lógica de uma comunidade que aplica um status de incapacidade relativa às mulheres, sob a desculpa da mesma vulnerabilidade que deveria se transformar em respeito. Ele pensa seu futuro e hipotético genro como alguém para quem “passará o bastão”. Apesar de ser um músico medíocre e a filha uma médica talentosa, vê a jovem como um fardo.
A política do guardião, suas implicações, atravessamentos e outras questões dentro daquele território é parte daquela zona de desconhecimento pela qual Roberta Mathias menciona. Para afastar parte das chances de ser reducionista ou etnocêntrico, fazer juízos de valor de uma sociedade é o grande desafio de qualquer análise sobre a obra. Não devemos ignorar o fato de que, na ótica ocidental, Maryam se ergue como uma desbravadora heroína – sem esquecer que essa é uma percepção inspirada em nossos valores. Para rever as dinâmicas políticas, a personagem de Zahrani segue o caminho da busca pela representatividade. Ao não conseguir embarcar para a porta que se abria no encontro médico, ela acha uma janela no pleito que elegerá representantes nas secretarias governamentais daquele distrito.
Percebendo que colocaria um degrau no subterrâneo para tentar alcançar o topo de uma montanha, ela propõe uma plataforma direta: pavimentar a rua do centro médico. De forma inteligente, Maryam vai atrás de legitimidade de discurso na visão da comunidade conservadora. O filme, então, vai apresentando as formas do machismo inovar – e de forma célere – para manter tudo como está. Sem portas e janelas para a doutora. Vamos descobrindo outros pontos da trajetória da protagonista, como o passado da mãe que tentou se posicionar politicamente igual a ela – e as consequências deste posicionamento. Quando age de forma direta neste seara, o longa-metragem nos remete a uma retórica de candidatos que, além de representatividade, pecam pela falta de criatividade. Nestas abordagens que ela ganha coro e torna mais urgente seu apagamento e deslegitimação.
Com cenas que não se estendem em suas propostas, a obra consegue falar muito, de forma direta, sem parecer uma experiência densa. Propõe debates importantes, aplicáveis naquele microcosmo ou para fora – dependendo de em qual local e posição de privilégios você está. Em uma das sequências, uma entrevista constrangedora falando sobre os hábitos femininos, recheada de reproduções machistas e que lembrou a introdução de forte carga sobre o racismo que inaugura “Estados Unidos vs. Billie Holiday” (2020), uma biografia que não soube pesar tão bem suas ideias.
“A Candidata Perfeita“, não, se inicia com cara de jogo ganho – e se mantém assim até o final, quando uma faísca de conformismo torna ainda mais desoladora todas aquelas representações, fiéis à capacidade que a sociedade tem de cooptar discursos somente para sufocar uma nova voz.
Veja o Trailer:
Adorei! Parabéns pelo conteúdo.