A Cordilheira dos Sonhos

A Cordilheira dos Sonhos

“A Cordilheira dos Sonhos” abriu a programação do Festival É Tudo Verdade 2020. Clique aqui e leia nossa cobertura completa.

Sinopse: No Chile, quando o Sol nasce, escala muros, colinas e cumes até atingir a última rocha no topo dos Andes. A cordilheira está em todo lugar, mas, para os chilenos, é muitas vezes um território desconhecido. Depois de explorar o norte e o sul do país em outros documentários, o diretor Patricio Guzmán se viu tentado a filmar essa imensa construção para explorar seus mistérios, poderosos segredos do passado e do presente chilenos. Guzmán encerra a trilogia formada ainda por Nostalgia da Luz (2012) e O Botão de Pérola (2015) num ensaio entre o memorialístico e o político sobre os avanços sociais do governo Allende (1970-1973), a repressão brutal da ditadura Pinochet (1973-1990) e a dura herança atual da política econômica desenvolvida no período autoritário.
Direção: Patricio Guzmán
Título Original: La Cordillera de los Sueños (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 24min
País: Chile | França

A Cordilheira dos Sonhos

As Três Faces da Memória

A sessão de abertura da 25ª edição do Festival É Tudo Verdade não poderia ser mais deslumbrante e, ao mesmo tempo, crítica. “A Cordilheira dos Sonhos” é um estudo em três atos da sociedade chilena, do realizador Patricio Gúzman – que, por sinal, enquadra essa obra como o término de uma trilogia. Ou seja, três atos de um terceiro ato maior. Visto do alto, o Chile nos encanta. A experiência de conhecê-lo nos arrebata desde o avião, quando aquele conjunto de montanhas que parece não ter fim surge diminuto e vai ganhando as pequenas janelas. A impressão é de que não estamos chegando em outro país e, sim, em outro planeta. Uma referência visual que é alimentada como símbolo cultural desde a infância e se mantém nas caixas de fósforos, que se tornou um símbolo do próprio longa-metragem.

Na primeira parte do documentário, o cineasta metaforiza os Andes sob a ótica da imutabilidade. É o passado mais remoto da nação, que tem naquelas rochas o testemunho de mais de vinte mil anos. Todavia, chama mais a atenção esse retorno de Gúzman à sua terra-natal. Uma aproximação que, a despeito dos traumas de quem precisou se exilar por força de um regime autoritário e antidemocrático, aplica uma visão que alterna o olhar estrangeiro com o saudosismo do filho da terra que está de volta. Partilho com o diretor a mesma divisão de sensações entre a admiração e o estranhamento de quem, por alguns dias, esteve lá. De fato, as cordilheiras são vistas – mesmo que de maneira idealizada – como uma barreira. Como se o Chile estivesse protegido do mundo. 80% de seu território está ali e até mesmo em Santiago, a capital do país, você esbarra com uma linda montanha que torna qualquer vista digna de mais uma foto.

Só que Gúzman toca em um importante ponto desta afetação de personalidade de um povo que possui esse casulo em forma de cordilheira. A indiferença com a qual Santiago parece tecer suas relações de afeto com quem a visita. Não é uma sensação ruim, nem mesmo um sufocamento causado pela competitividade de um metrópole pulsante como São Paulo, por exemplo. O Chile parece sempre evitar a criação de novos vínculos, como se ainda vivesse sob uma ameaça. Talvez por isso o diretor tenha se surpreendido com o envolvimento dos jovens em pautas sociais. Na crítica de “Resplendor” (2019) enaltecemos o museu construído em memória de quem perdeu a vida ou foi torturado por governos ditatoriais por todo o mundo. O diretor, entretanto, encerra seu ato inaugural mostrando que esse entendimento é da porta do museu para dentro. Lá fora, no labirinto de ventos, as questões parecem esquecidas, pela mesma falta de vontade de serem resolvidas.

Quando Augusto Pinhochet deu o golpe de estado no país, Patricio filmava “A Batalha do Chile“, uma outra trilogia  que transformou o cineasta em uma referência no cinema de documentário. Registra todo o processo eleitoral de março de 1973, em que a população não deu a maioria qualificada ao Parlamento chileno, inviabilizando o impeachment de Salvador Allende até a tomada militar. O cineasta foi preso e expulso logo depois de conclui-lo. A segunda parte de “A Cordilheira dos Sonhos” resgata esse período da História do país, com toques autobiográficos. Suas lembranças dentro do Estádio Nacional, em que ele – pouco mais de dez anos antes – havia assistido a Batalha de Santiago, como ficou conhecida a partida entre Chile e Itália na Copa de 1962. Voltaria para permanecer preso por quinze dias, imotivadamente. Ali ele contará com a companhia de Pablo Salas, colega cineasta que permaneceu no território.

Na ideia de que um artista é um zelador da beleza, o documentarista passa a transitar pelo seu próprio meio de produção. Muito em voga, a democratização de acesso é materializada quando Gúzman nos mostra uma fita VHS com capacidade para vinte minutos de filme – usada na década de 1970 – para depois mostrar um pequeno HD externo com possibilidade de armazenamento de 1200 horas. Nessa transição de atos, o longa-metragem entra na discussão da ampliação das representações e dos discursos através da imagem. Em determinado momento, o diretor diz que sua geração estava preocupada em criar uma nova sociedade. Porém, se não fosse todo o conhecimento técnico e desenvolvimento do ofício de artistas como ele, a documentação fundamental de produções como “A Batalha do Chile” não existiriam. Hoje, pulverizando as possibilidades de criação, ampliamos as vozes. Parece termos retirado parte da relevância da mídia hegemônica, sempre tendente a proteger quem está no poder. A questão é: a geração atual está tão imbuída no desejo de mudança?

Até chegar na atualidade, “A Cordilheira dos Sonhos” traz duras imagens de seus arquivos. Tão potente quanto grandes narrativas latino-americanas como “A História Oficial” (1985), “Macchuca” (2004) e o recente “Uma Noite de 12 Anos” (2018) – todos com pertinentes casos envolvendo os ataques à democracia na região. É aqui que o filme resgata as rachaduras, tão literais em sua abertura quando usa o deslumbre das montanhas, agora projetadas nas múltiplas sociedades do continente, que sempre se vê unido no ascpecto temporal em suas lutas. Aqui que Gúzman, sob as mesmas acusações dos brasileiros de esquecimento do passado e ignorância histórica, traz um panorama atual do Chile. As consequências da político neoliberal dos Garotos de Chicago, que – agora velhos – aportaram no Brasil com a mesma promessa fantasiosa de estado mínimo.

Aos poucos a realidade vai suplantando o anseio por uma reparação. Pequenas homenagens e lembranças daqueles que deram a vida em nome da liberdade do povo vão se espaçando. Outras demandas vão se impondo e a letargia em relação às reivindicações tomam conta. Quase ao final de “A Cordilheira dos Sonhos“, um dos momentos mais impressionantes. O raciocínio de que a ampliação das pautas sociais acabaram enfraquecendo a luta em favor dos direitos humanos. Vários grupos bem articulados traçam seus próprios caminhos, mas não se conectam. Estamos em uma época em que temos facilidade de transmitir nossas mensagens, muito desejo por emiti-las, mas sem união, nada disso faz sentido. Recado que serve para organizações sociais, para todo o povo chileno e para a América Latina em sua integralidade. Abrimos mais um festival com outra obra que nos convida a olhar para nossos irmãos e não deixar que uma nova onda de sofrimento nos engula.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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