Sinopse: Em “A Felicidade das Pequenas Coisas”, um jovem professor butanês, Ugyen, foge de suas obrigações enquanto planeja ir para a Austrália no intuito de tornar cantor. Como reprimenda, seus superiores o enviaram à escola mais remota do mundo, uma aldeia glacial do Himalaia chamada Lunana, para completar seu serviço.
Direção: Pawo Choyning Dorji
Título Original: ལུང་ནག་ན (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 50min
País: Butão | China
O Mestre Sem Carinho
Como parte de uma cobertura menor da Apostila de Cinema aos indicados ao Oscar de 2022, o representante do Butão, “A Felicidade das Pequenas Coisas“, que aportou nos cinemas do país no início do ano, entrou na lista (ou limbo) de espera de produções que assistiremos quando possível. Para nossa surpresa, o canal por assinatura e serviço de streaming Telecine repetiu uma interessante parceria com o Festival do Rio e apresentará, ao longo desta semana, uma obra por dia em sua plataforma. Elas ficarão disponíveis em pré-estreia, pelo período de 24 horas. O indicado à categoria de melhor filme internacional ao prêmio da Academia foi escolhido como filme de abertura.
Escrito e dirigido por Pawo Choyning Dorji, o drama asiático nos apresenta uma história simples, a partir do dilema de Ugyen (Sherab Dorji). Em seu país, após a formação como professor, ele tem que prestar serviços ao Estado pelo período de cinco anos. Todos que convivem profissionalmente com o jovem percebem que ele não se sente motivado a lecionar. Parece ter aceitado uma ausência de vocação que inviabiliza seu futuro na carreira. Como reprimenda por manifestar o desejo de descontinuar na profissão, ele é transferido no último ano desta residência, da cidade de Gedu (considerada média para os padrões do Butão, com cerca de cinco mil habitantes) para a inóspita Lunana, aos pés do Himalaia.
Boa parte do que torna “A Felicidade das Pequenas Coisas” tão especial é esta simplicidade narrativa. Na jornada do protagonista, a sequência de dificuldades para chegar àquele território e exercer seu ofício vai gerando uma resposta resistente e resiliente por parte dele. Ugyen entende que as chances mínimas das crianças obterem partes de conhecimentos como matemática e inglês depende dele. Ao mesmo tempo, observa que há um legado consuetudinário que explica, para aquelas pessoas, alguns dos fenômenos ou de aspectos de sua rotina.
Sendo assim, o aquecimento global que vai destruindo a paisagem de neve naquelas cordilheiras é por eles ignorado. Há séculos que eles sabem que habita naquela montanha um monstro soterrado pelo gelo e que, a partir do momento em que deixar de assistir a camada branca, uma nova ameaça surgirá. Dorji não esmerilha a trama com reforços melodramáticos ou apelando para a imagem infantil da simpática Pem (Pem Zam) para garantir a dose de sensibilidade com a qual o público se sente confortável. Não podemos ignorar que a ausência de complexidade pode ser um fator positivo em muitas situações. Falamos um pouco disto quando tentamos compreender o sucesso do documentário “Professor Polvo” (2020) na temporada de prêmios do ano passado.
Enquanto a análise narrativa do longa-metragem nos leva ao caminho tradicional, a produção do filme é bem diferente dos dramas simples que nos acostumamos a ver. Lunana, de fato, demanda mais de uma semana de translado, o que demandou que toda a equipe e suas ferramentas de trabalho fossem transportadas por dezenas de mulas. Sem energia elétrica, baterias e painéis solares se tornaram obrigatórios para garantir a realização da obra. O isolamento do lindo vilarejo do Butão tende a se tornar menor de agora em diante. Não apenas porque “A Felicidade das Pequenas Coisas” tem um viés de propaganda, explorando – e de forma visualmente interessante – as paisagens locais.
Isto porque a recente exportação de fungos medicinais tem trazido prosperidade ao território. Mesmo assim, notas de produção indicam que o elenco, formado em boa parte pela população local, não sabia o que era uma câmera e até mesmo o conceito de um filme precisou ser explicado. Uma forma parecida de influência da própria arte criada naquele espaço, algo que mencionamos no indiano “Uma Skatista Radical” (2020), produção original da Netflix. Para além da receptividade de público e crítica e da submissão a prêmios internacionais, obras como esta evocam um tipo diferente de legado – e que só entenderemos daqui há um tempo.
Sobre a experiência de Ugyen como professor em Lunana, “A Felicidade das Pequenas Coisas” vai direto na mensagem de como a proposta de um desafio pode mudar nossa mentalidade. Como muitas das vezes nosso deslocamento pode ser fundamental para alterar percepções, inclusive sobre nós mesmos e nossas potencialidades. Tudo isso em um cenário deslumbrante, pouco acessado e agora apresentado ao mundo pelas lentes que unem registros ficcionais e, em certa medida, documentais da produção de Pawo Choyning Dorji. De uma suposta simplicidade, sai a felicidade de uma experiência cinéfila. É um pouco o que há por trás da nossa relação de amor com a arte e o impacto que ela pode causar, enquanto indivíduo ou território.
Veja o Trailer: