A Forma que Está por Vir

A Forma que Está por Vir

Sinopse: Sundog mora no deserto de Sonora, na fronteira mexicana. Ele é um cavalheiro idoso, que vive de tudo o que a natureza brutal lhe dá, seja um javali ou o veneno psicodélico de um sapo. Mas os agentes da patrulha de fronteira estão ameaçando a a paz no reino do deserto de Sundog, que o recluso armado está preparado para defender. “A Forma que Está por Vir” mostra a relação entre humanidade e natureza em um momento crítico, quando a desobediência civil é a resposta provocadora às perguntas mais prementes.
Direção: J.P. Sniadecki e Lisa Marie Malloy
Título Original: A Shape of Things to Come (2020)
Gênero: Documentário Experimental
Duração: 1h 17min
País: Estados Unidos

A Forma que Está por Vir

Desinteligências e Desobediências

A Forma que Está por Vir” acaba dialogando, informalmente, com “Telemundo” – outra obra apresentada no Festival Ecrã. Quando a sinopse descreve o protagonista Sundog como alguém que entende a desobediência civil como resposta aos tempos em que vivemos, acaba cortando a bola levantada na minha crítica ao filme de James Benning. Antes de chegar nesse ponto, vale a pena (tentar) enquadrar o longa-metragem dos diretores J.P. Sniadecki e Lisa Marie Malloy como um documentários experimental. Na falta de palavra melhor, carregado de visceralidade.

Desta vez o clichê não é tão ofensivo, porque uma das representações do protagonista traz ele literalmente limpando as vísceras de um animal que acabou de caçar. Sundog é mais um homem que se propõe o grande desafio de viver totalmente à margem da sociedade. Pior, a norte-americana, criada para sufocar todos aqueles que não se adequam ao ritual de beijar a mão invisível do mercado. Seria um General Fantástico, promovido depois que se livrou daquele monte de crianças e adolescentes que foram usar todo o conhecimento filosófico em grandes universidades e realizaram o sonho da hipoteca própria.

Os cineastas trazem uma vida de solidão, expressada desde a visita a um cemitério até o fundamental e fisiológico ato de defecar – este é prudente que se exercite na solidão, mesmo acompanhado. Mas é curioso como, aos poucos, os animais que transitam por “A Forma que Está por Vir” começam a tomar conta dos espaços, se ocuparem da tela. Javalis, como aquele caçado no início, trazido ao filme como uma presa com a única função de se alimentar, retornam em uma relação quase doméstica, recheada de carinho. Já o sapo atua como parceiro, extraindo dele um veneno com funções psicoterapêutica ao homem. Se tanto criticamos em “Pressão Atmosférica” a falsa percepção de comunhão da Humanidade com a Natureza, aqui Sundog se ergue como um lobo solitário que consegue aplicar esse objetivo.

Suas manifestações não são tão exploradas pelo longa-metragem como seriam em um documentário menos experimental. Aqui ele é de poucas palavras, mostrado em seu reduto, aparentemente com pouca interferência em seus atos. Quando fala, revela ser apenas uma pessoa que quer dar a sua contribuição. Entende que o Meio Ambiente demorou quatro bilhões de anos para atingir uma harmonia que nós, em poucos séculos, estamos destruindo. Sua fuga da sociedade é menos um ato de fé (ou descrença) e mais uma tentativa de deixar um legado de vida menos desarmônica.

A desobediência civil chega quando agentes não querem que essa alternativa a tudo o que discorda no mundo seja praticada pelo protagonista. Sundog não quer anarquizar nossa existência – nem sequer ignorar as regras do jogo em que vive, a sociedade. Mesmo assim, ele não é respeitado em seu espaço. Quando falei do debate sobre Thoreau ser fundamental nas séries mais básicas da escola, é que questionar regras é um exercício saudável e que costumamos ter predileção quando somos mais novos. Só vamos entender que todo o sistema opressor – que passa pela configuração da própria sala de aula em que somos alfabetizados – tencionam mais nosso respeito incondicional às regras do que decorar a Fórmula de Bhaskara.

O tempo passa e perdemos o momento, até que chegamos em ruas sem saída como a qual tanto o Brasil do Festival Ecrã quanto os Estados Unidos de “A Forma que Está por Vir” se encontram. A institucionalização da mentira. O errado como diretriz a ser seguida. A opressão naturalizada. A intolerância como expressão de liberdade de opinião. Exibido em praça pública, Sundog defecando e tirando os órgãos de um javali chocaria mais do que a leitura dramatizada do orfanato creep da Pastora Flordelis. Tanto a mostra de cinema quanto o caso em aberto de assassinato ocuparam a última semana na minha bolha. Nenhum deles será utilizado para questionarmos regras. Seguiremos apenas repetindo o mantra de que elas devem ser cumpridas.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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