Sinopse: Através da correspondência audiovisual entre duas cineastas cubanas radicadas na Galiza e Genebra, articula-se o diálogo de “A Meia Voz”, documentário etnoautobiográfico. Duas mulheres à beira dos 40 anos enfrentam os desafios da emigração, tentando se reconstruir longe do seu país natal. Duas histórias em que identidade, maternidade e criação se entrelaçam e impulsionam.
Direção: Heidi Hassan e Patricia Pérez Fernandez
Título Original: A Media Voz (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Cuba | Espanha | França | Suíça
O Que a Força do Tempo Não Irá Destruir
“A Meia Voz” encerrou as exibições diárias da mostra competitiva ibero-americana de longas-metragens do 30º Cine Ceará. Mais um festival que se adaptou bem ao formato online (na verdade, ele foi híbrido, com sessões presenciais no Cineteatro São Luiz). Em mais de uma plataforma, com exibições na TV local, carinho e destaque especial para o recorte regional, foi mais uma semana que deixará saudades nessas múltiplas coberturas da Apostila de Cinema. E é um pouco sobre saudade o objeto do documentário dirigido por Heidi Hassan e Patricia Pérez Fernandez.
Duas cineastas cubanas que se destacaram ainda jovens na realização de curtas-metragens. Formadas pela Escuela Internacional de Cine de Cuba nos anos de 2002 e 2003, elas residem em pontos diferentes da Europa e transformaram a troca de correspondências tradicionais de outras gerações em diários de imagens construídos de forma muito poética e uniforme na estreia de Heidi em longas (sendo o segundo de Patricia).
Trata-se de mais uma produção que aplica um olhar crítico sobre os governos de viés socialista da América Latina. Assim como “Era uma Vez na Venezuela“, também apresentado no Cine Ceará, estamos diante de um exemplo de obra capaz de criar diálogos, mesmo com aqueles que divergem politicamente das realizadoras. Elas apresentam de forma sentimental e contundente suas visões sobre Cuba e isso basta para que o espectador se envolva na medida certa com o filme.
Dois pontos se destacam em “A Meia Voz” e por isso sua caracterização na sinopse como documentário etnoautobiográfico é cirúrgica. Primeiro, a relação pessoal entre as diretoras. A montagem parece iniciar uma trajetória solitária de uma mulher que reflete sua amizade com outra. Antes de começarem as trocas, ouvimos a intimidade de quem se diz ser, perto dos quarenta anos, uma “outra mulher”. Fica óbvio que o mote do longa-metragem é a mudança. As mudanças, aliás. Ao vermos nossa permanência no mundo ganhar novos sentidos, nossas percepções seguirem se alterando com o passar do tempo, é natural essa inabalável ideia de que o mundo mudou. E, com ele, todo o passado que guardamos na lembrança.
Curioso que 2020 foi um ano em que essa convenção de que não somos mais os mesmos ganhou novos significados. No curto prazo, toda a mudança de hábitos nos tornou seres em busca por novas identidades – estamos nos reinventando dentro da nossa própria casa e dificilmente voltaremos ao que éramos antes. Por outro lado, a noção de distância também é outra (e até de tempo, eu mesmo percebi que tenho dias de 8 horas e dias de 36 – se é o sono que define). Ela existe e não existe – ela se democratizou posto que nos tornamos inacessíveis.
Em “A Meia Voz” essa reflexão sobre a amizade se vale da ideia de que aquela pessoa que esteve do nosso lado na infância e na juventude, que nos deu as mãos, salvou nossas vidas, dividiu conosco as descobertas, os temores, os planos de futuro e os sonhos, não existe mais. É muito estranho reencontrar um amigo e, por força das circunstâncias, não ter a troca de irmandade profunda de outrora. Porém, o documentário quebra essa lógica, coloca isso na mesa, mas prova que o vínculo é eterno – mesmo que cada um(a) em uma estrada. Heidi e Patricia foram apontadas como representantes do novo cinema cubano e imaginavam fazer parte da reconstrução da identidade cultural do seu país. Viveram, então, uma espécie de frustração ao perceber que as mudanças na sociedade são mais lentas e graduais do que nossos anseios.
Ao tomarem rumos diferentes, elas se tornaram imigrantes na Europa e precisaram dar alguns passos atrás no sonho da sétima arte. O filme trata muito bem desse deslumbre inicial de chegar a um continente e se admirar com o frio e a neve – para depois perceber que isso não passa de puro exotismo dos habitantes dos trópicos. O documentário usa muito a narrativa quase sussurrada, a sensação de autoquestionamento, que Petra Costa se vale em seus filmes. Porém, acertadamente, não se estende nessa abordagem. Faz uma edição que agiliza algumas ações, produz imagens com poder de síntese mais latentes. Deixa de lado o “contar” histórias e passa mais a “mostrar”. Os momentos mais bonitos de “A Meia Voz” ocorrem quando ele parece se tornar um grande álbum de fotografias, com imagens de Cuba, da Suíça, da Espanha e objetos de uso pessoal de Heidi e Patricia.
Diante da ideia de mudanças de si e do outro, a narrativa passa a tratar desse vínculo com o território. Uma das frases mais fortes é dita quando uma delas lembra que elas viraram “turistas do próprio país”, podendo ir para a Cuba com pouca frequência e por pouco tempo. Essa sentença, ao lado do olhar sobre uma Europa quase hostil, cria três fases, por elas definidas como: deslumbramento, incerteza e ansiedade. Se manter filmando, entretanto, pareceu servir como uma verdadeira terapia.
A experiência ao final da sessão é de felicidade por Heidi e Patricia. Por elas entenderem que afeto sem encontros também tem seu poder. Quando tudo parece perdido, é que podemos atingir um autoconhecimento que nos leve a “fazer o que realmente queremos fazer“, como é dito. “A Meia Voz” é uma crônica sobre como a mudança não precisa levar à destruição. Ideal para nossos tempos, em que há um mundo lá fora que não reconheceremos – mas aqueles que nos amam não deixarão nunca de nos pegar pelas mãos.
Veja o trailer:
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