A Nuvem Rosa

A Nuvem Rosa Filme Crítica Poster

Sinopse: Giovana está presa em um apartamento com Yago, a quem havia recém conhecido em uma festa. Enquanto esperam a passagem de uma misteriosa e mortal nuvem rosa que aparece nos céus, eles precisam conviver como um casal. Ao longo dos anos, Yago vive sua própria utopia, enquanto Giovana sente-se cada vez mais aprisionada.
Direção: Iuli Gerbase
Título Original: A Nuvem Rosa (2021)
Gênero: Drama | Ficção
Duração: 1h 45min
País: Brasil

A Nuvem Rosa Filme Crítica Imagem

Tempos Sombrios

Não há como desvincular uma sessão de “A Nuvem Rosa” da tonalidade profética de sua história. Escrito e dirigido por Iuli Gerbase, seu longa-metragem de estreia vem chamando a atenção do mundo desde sua exibição no Festival de Sundance 2021, época em que a vacinação avançada nos Estados Unidos e a variante delta da covid-19 eram objeto de desdém das autoridades de todo o planeta. Estreando esta semana nos cinemas brasileiros ainda bem vazios (e segundo todos os protocolos que, pessoalmente, não desejo testar), o espectador terá a oportunidade de acompanhá-lo em sua casa a partir de 2 de setembro (também conhecida como próxima quinta-feira) quando chega ao catálogo do Telecine.

Assistir no sofá de casa, na tela de televisão que se tornou o melhor investimento da família no distante ano de 2019, é se encontrar na situação pela qual estamos passando. E, pior. Ao antecipar uma realidade de forma assustadora, a cineasta nos leva a outro exercício: a de que poderia ser ainda pior. Ao invés do vírus, os personagens estão presos em ambientes fechados por conta de uma nuvem rosa que emite um gás tóxico, fatal para os humanos em apenas dez segundos de contato. Uma parte da população acha que se trata de um período rápido de confinamento. Afinal, é só uma gripezinha nuvenzinha. A lógica das mudanças de tempo levam a crer que o vento ou uma tempestade porá fim a este risco.

O público fica todo o tempo ao lado de Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça), alçados a um companheirismo apesar de acabarem de ter se conhecido, tal qual um casal formado em reality-show (de confinamento). Como boa parte dos representantes de sua geração que não são negacionistas ou seguidores de mitos e ministros Posto Ipiranga, eles se adaptam ao isolamento social a partir de uma visão pouco otimista. O governo envia pelas janelas uma caixa com provimentos básicos, de macarrão instantâneo, grãos como arroz e feijão, proteína e um suco instantâneo ruim de descer – em uma verdadeira socialização dos prejuízos que soa utópica para quem testemunhou algo parecido na vida real.

Já os amigos e familiares estão presos em pontos bem piores, desde uma padaria até – no caso de uma sobrinha – na casa de uma colega de escola. Ninguém imaginava (nem aqui e nem lá) que permaneceriam tanto tempo sob estas amarras. Bate forte quando a menina coloca na sua lista de futuras realizações participar de uma festa “de verdade”. Para nossa mente humana, virtual e real parecem longe de se unirem. Vale mencionar que “A Nuvem Rosa“, por melhor que seja a experiência em uma análise pessoal, pode gerar gatilhos a quem não está convivendo bem com o atual momento.

Gerbase antecede boa parte do que nos incomoda, tanto nos limites de nossas casas quanto em nossas projeções de leituras de uma sociedade a qual temos acesso apenas à distância e limitada por nossas bolhas e escolhas. Até a naturalização do absurdo, como ocorre quando uma reportagem mostra um grupo comemorando o aniversário de um ano da nuvem, além de um depoimento sobre os benefícios da quarentena infinita, como o fim do dos assaltos e sequestros. O que não há no filme é o aspecto econômico, afinal, apenas na mente doentia do neoliberalismo fascista cogitar-se-ia jogar o povo à morte para resguardar os lucros dos empresários, não é mesmo?

A obra não é profética apenas na abordagem, ela também é na exploração da linguagem audiovisual dos novos tempos. Algo que já existia, desde os desktop movies até narrativas convencionais que usam diálogos visuais, principalmente como elemento de gênero – mas que virou quase regra nas criações do último ano. Usando os ambientes fechados, a captação de telas de celular, o equilíbrio entre o alívio de poder contar com ferramentas modernas e o tédio por parecer esgotar todas as possibilidades, dentre outros. No mais significativo, usa a ideia da automação e do fim do emprego, aliada ao empreendedorismo atravessado da doutrina meritocrática dos coachs, para mostrar seus protagonistas buscando alternativas e novas capacitações profissionais.

Porém, a grande âncora da narrativa é a crise conjugal, aquela que tem abalado muita gente que, independente do amor e da paixão que ainda resistem, precisam reinventar uma vida a dois que não cessa. Giovana e Yago passam por algumas fases que casais já se manifestaram também terem vivido nos últimos dezessete meses e meio (e contando…). Há quem tenha revisto a intenção de não ter filhos, há quem repense o lugar onde mora e há aqueles, assim como os protagonistas, que chegaram ao ponto de tentar um choque ainda maior na missão de reinventar-se.

Andando em uma corda bamba, sempre no limite da ansiedade, da depressão, do nervosismo, do caos; qualquer fagulha de desconforto transforma os relacionamentos dos confinados em um incêndio. Não existe mais o “tempo para refletir”, não tem como amadurecer um pedido de desculpas e nem cuidar das feridas de palavras mal colocadas. A obra, ao ampliar sua abordagem para uma trajetória de anos, fornece uma assustadora amplitude do quão distante podemos estar no fundo deste poço.

Se há algo que “A Nuvem Rosa” reflete bem é o peso da ausência da socialização. Não é apenas saudade, são fragmentos de existência que auxiliam a superar os obstáculos da rotina. Nos faz sentir recompensados com o fim de ciclos, que permite que encontremos sentido em sair de casa, nos deslocamentos e nos contatos que não temos. Já as gerações de crianças que nasceram ou cresceram nesse contexto leva a reflexões que ainda não temos noção das consequências.

Naturalizar o fato não ajuda. Ignorar e achar que precisa apenas botar a máscara na porta dos estabelecimentos também não. Estamos vivendo com a obrigatoriedade de nos reinventar e com a certeza de que teremos que fazer isso ainda mais no longo processo. Até porque, talvez não seja mais questão de “quando” e sim de “se” isso acabar um dia.

Veja o Trailer:

 

Clique aqui e leia críticas de outros filmes do Telecine.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *