Arábia

Arábia

Sinopse: André (Murilo Caliari) é um jovem morador de uma área industrial próxima a Ouro Preto. Um dia ele encontra o diário de Cristiano (Aristides de Sousa), metalúrgico que acabara de se acidentar e foi levado ao hospital. A partir daí ele mergulhará nas lembranças de um desconhecido.
Direção: Affonso Uchôa e João Dumans
Título Original: Arábia (2017)
Gênero: Drama
Duração: 1h 37min
País: Brasil

Arábia Imagem

Observar e Viver

Arábia” estreou no circuito comercial brasileiro em 2018 e é difícil encontrar entre aqueles que assistiram à época, alguém que não tenha colocado o longa-metragem dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans na lista de melhores do ano. Eu, inclusive, que marquei ponto na primeira vez em que foi exibido no Canal Brasil. Só que o filme, que por si só é composto por lembranças, baseando-se em memórias trocadas entre dois personagens, já nos remetia a uma outra época. Uma adolescência em que pude ler “Dublinenses” de James Joyce. Antes de saber que a territorialidade e as diversas maneiras intrínsecas e extrínsecas de expressá-las despertaria meu interesse, aquele compilado de contos do irlandês já havia me marcado. Confesso que, quinze anos depois, não me lembrava de Arábia (conto que inspirou a produção), especificamente.

A produção venceu quatro prêmios no Festival de Brasília de 2017 (incluindo melhor filme) e circulou por grandes festivais internacionais, como o Festival de Roterdã. Também ganhou três dos sete troféus do Prêmio Guarani aos quais foi indicado (filme, direção e roteiro adaptado).

Ao rever o filme na Mostra Brasil Cinema Agora! (onde ficará disponível gratuitamente até 1º de agosto) e reler o texto de Joyce, as obras cresceram ainda mais. A potência do conto do século XIX, que nos apresenta um protagonista que se vale da observação e do silêncio, é transportada para o audiovisual pelos cineastas em uma construção de Brasil que une as provocações dos debates urgentes (como o próprio Uchôa consegue em “A Vizinhança do Tigre“) com uma narrativa épica que tem o poder de amealhar um público pouco afeto às produções nacionais. Uma junção de elementos que, apesar da simplicidade no degustar, é difícil de ser construída.

Arábia” tem um longo prólogo, o que pode causar certo estranhamento a quem procura a fluidez formulaica da narrativa ficcional. André (Murilo Caliari) surge como protagonista. Sofrendo de alienação parental, ele precisa – ainda adolescente – dispor de tempo para auxiliar na criação do irmão mais novo. Concede permissões que adultos responsáveis jamais fariam, desde deixar a criança tomar café à noite até permitir que a mesma não vá à igreja, concedendo de maneira precoce a liberdade de crença que nossas organizações familiares nos negam. Só que Uchôa e Dumans não querem que a simples observação de André seja o elemento que esgote seu filme. No ponto de virada, que introduz a narrativa que nos acompanhará, o garoto começa a ler o diário de Cristiano (Aristides de Sousa), funcionário da indústria metalúrgica próxima à sua residência e que se acidentara na rua.

Se já nos encantava a formação de uma maturidade precoce de André, o que vem depois é uma viagem pelo interior do Sudeste brasileiro tendo a força do trabalho como mote. Aristides, que também fez parte do elenco de “A Vizinhança do Tigre” volta a nós como um guia. Uchôa pode revisitar sua obra anterior e caracterizar Cristiano como um contagense (mesmo bairro, do Nacional) que acabara de sair da prisão. Há uma colheita de mexericas também, uma espécie de universo expandido da filmografia do co-diretor. Com isso, há dois diálogos interessantes imediatamente inaugurados: a ampliação das propostas do conto de James Joyce e a expansão das questões inauguradas na obra anterior de Affonso Uchôa.

Mostra, a princípio, as dificuldades (para não dizer impossibilidades) da ressocialização – o que leva fatalmente um ex-presidiário sem vínculos afetivos fortes a reiniciar a vida em outra localidade. Cristiano sai de Minas Gerais e vai para São Paulo, em Piracicaba, tendo aqui início uma captação de imagens inspirada da dupla de diretores. Cada sequência tem sua lógica própria sem que se comprometa a unidade do filme. É quase como se a câmera se adaptasse ao novo local retratado – desde uma longa estrada até uma pequena fazenda. Se nos momentos reservados a André a observação é direta – com focos nos objetos (como o diário, o uniforme de metalurgia) – quando mergulhamos nas memórias de Cristiano todas as possibilidades visuais são exploradas.

Tratando da relação com o trabalho, “Arábia” nos leva a Governador Valadares, Ipatinga e finalmente a Ouro Preto. Cria diálogos musicais ao colocar lado a lado o sertanejo e o rap, partilhando o mesmo violão. Monta suas transições a partir de canções populares, como “Cowboy Fora-da-Lei” de Raul Seixas. Usa o país, a língua e suas manifestações culturais como elementos unificadores sob esse argumento. Se imaginarmos o bom uso de “Três Apitos” de Noel Rosa na voz de Maria Bethânia chegaremos a essa conclusão. Uma música de amor feita no início do século XX para um romance em Vila Isabel no Rio de Janeiro, regravada por uma baiana do Recôncavo que conquistou o mundo na segunda metade do mesmo século – música esta que ganha um contexto particular em um filme de 2017 que se funda em um conto irlandês do século XIX.

É a partir dessa divisão de experiências que nasce “Arábia“. Uma obra que por vezes deixamos até de nos preocupar em encontrar protagonismos. É André dividindo conosco a experiência que Cristiano, sem saber, partilhou com ele. Ler aquele diário foi ter contato com alguém que provavelmente ele não conheceria. Ler, de certa maneira, sempre será isso. O cinema também o é. Porque a arte, em sua origem, é essa partilha. Só que o mais emocionante é poder trazer todos esses pontos nessa narrativa épica, que usa o Brasil erguido pelas mãos dos trabalhadores, para nos fazer perder em encontros, reencontros e desencontros. E chegar ao fim sem depender de nada, podendo usar – no seu momento mais agudo – até mesmo o silêncio como linguagem. Como se Dublin e Ouro Preto fossem vizinhas.

O FILME ESTÁ DISPONÍVEL PARA LOCAÇÃO NESTE LINK:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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