Sinopse: Em “As Boas Intenções”, estamos em Buenos Aires, início dos anos noventa. Amanda tem 10 anos, dois irmãos mais novos e pais separados com quem os filhos vivem alternadamente. O pai, Gustavo, ama os filhos um pouco mais do que a si mesmo. Quando com ele, Amanda é obrigada a assumir o lugar de um adulto e a cuidar de todos como pode. Um dia a mãe propõe a alternativa de levar os filhos morar fora do país, longe da crise econômica e da vida complicada do pai. A proposta coloca Amanda em xeque.
Direção: Ana García Blaya
Título Original: Las Buenas Intenciones (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 26min
País: Argentina
O Que Nos Faz Lembrar
“As Boas Intenções“, de Ana García Blaya, é o representante argentino da mostra ibero-americana de longas do 30º Cine Ceará. Mais uma narrativa em que uma jovem realizadora apresenta sua visão sobre a sociedade e aqueles que os cercavam em sua infância ou adolescência. 2020 tem sido um ano interessante para aqueles que apreciam este tipo de construção. A 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trouxe duas expressões que partem deste princípio. Do mesmo país, “Mamãe, Mamãe, Mamãe” de Sol Berruezo Pichon-Rivière tem o foco no núcleo familiar formado por mulheres. Aqui, a cineasta faz uma abordagem a partir da relação de três crianças que são filhas de pais separados. Gustavo (Javier Drolas) recebe a notícia de que terá que se acostumar com visitas menos constantes quando sua ex-esposa anuncia que se mudará para o Paraguai, a fim de fugir da crise econômica que começava a assolar a Argentina. Amanda (Amanda Minujin), a menina mais velha, quer seguir rumos diferentes e se manter ao lado do pai.
O público brasileiro conheceu um pouco dos reflexos da crise que gerou uma falta de perspectiva em uma obra que aqui aportou em 1998. “Pizza, Cerveja e Cigarro” ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Gramado e, para muitos, era o primeiro contato com um cinema argentino atualizado, que usa linguagem tradicional para que suas narrativas urbanas perpassem por questões políticas e socioeconômicas cotidianas, sem o peso de uma crítica profundamente construída, ou, por que não dizer?, mais sisuda e didática. Blaya, sem dúvida, estava inserida neste momento e já era uma realizadora desde criança. A formatação de sua trama demonstra que ela já observava os fazeres artísticos e dali ergueria sua carreira.
O longa-metragem de estreia não poderia ser mais pessoal – e, ao mesmo tempo, universalista. Isso nos faz lembrar a outra produção que se destacou na Mostra SP, o francês “Dezesseis Primaveras“. Nela, a jovem Suzanne Lindon também se permite a autobiografia, mas parte de um ponto convencional para criar uma obra de desconstrução de elementos de gênero – no caso, comédias românticas e filmes franceses agridoces. “As Boas Intenções” abraça mais as tais intenções. É um filme de época (e como dói para quem não é mais jovem lembrar que os anos 1990 estão bem distantes). O que Bruno Stagnaro e Israel Adrián Caetano fizeram nas ruas de Buenos Aires na obra de 1998 precisa ser revisitado, já que estamos falando de um mundo que não existe mais.
Ana García Blaya o fez usando não apenas suas referências, mas seu próprio material do período. Em determinado momento, ficamos sabendo que a história se encaixa, precisamente, no ano de 1993 (quando a cineasta tinha catorze anos). Como a diretora já disse em entrevistas, época em que os videoclipes e as vídeo câmeras encontravam seus auges de popularidade. Ela ganhou uma de seu pai e guardou todo o conteúdo, usado na pré-produção como fonte de pesquisa para reconstituir a época. Por fim, as imagens acabaram entrando no corte final. Sua utilização, quase sempre acompanhada da trilha sonora da época (deixamos uma playlist com todas as músicas que tocam no filme ao final do texto), contribuem ainda mais para que a experiência de assistir ao longa-metragem seja agradável. Os créditos iniciais parecem até uma das aberturas de “The Real World”, programa de TV que a MTV estadunidense lançou em 1992 e por muitos considerado o primeiro reality-show (na década de 1970 programas similares foram realizados, sem que isso criasse uma linguagem, tal qual perdura há trinta anos).
Com muita sutileza, uma história que nos envolve, “As Boas Intenções” provoca debates sobre a decadência da classe média argentina, uma crise talvez nunca superada financeiramente, mesmo que a luta do povo por manter educação e, principalmente, cultura de qualidade seja observada cada vez mais. Esse filme é um grande exemplo de viagem por questões intrínsecas e extrínsecas dos personagens, cada qual com seu carisma e, por consequência, de identificação para boa parte dos espectadores. Sem que um drama edificante se imponha, como a fórmula que replica “Kramer vs. Kramer‘ (1979). Blaya quer se aproximar mais das gostosas comédias indies do período em que ela se formou como amante de cinema. Tem a fluidez e o dinamismo de produções como “Caindo na Real” (1994) (um eclipse de qualidade na carreira de diretor de Ben Stiller) e nos emociona sem que explore ou force questões familiares, tal qual “Colcha de Retalhos” (1995), de Jocelyn Moorhouse.
Sendo assim, abrange a relação com o pai, aquele que muitas vezes dividimos o amor pelo futebol, os domingos à beira da piscina – mesmo que saibamos, no fundo, que ficou com ele a parte mais fácil da criação. Nem sempre tão comprometido ou com senso de responsabilidade. Amanda vai construindo seus ideias, refletindo sobre o futuro e chega a uma verdade inescapável. E nós, lembrando que já lutamos na adolescência com a moeda da maturidade – e suas duas faces que giram e mostram o quão colorida (e sombria) é essa fase – saímos melhores da sessão.
“As Boas Intenções“, por fim, consegue ser de época, saudosista, referencial, sem que isso seja revestida de uma trama pueril, que aposte no jogo ganho de quem – imerso na própria memória – viaja para momentos que considera felizes. Usa sua linha temporal como mais um elemento de construção – que poderia ser outro. Mas, que bom que é esse e que alguns de nós também possa dividir as lembranças que Amanda e Ana García Blaya tão simbioticamente mostraram. Terminamos com vontade de transformar o pós-filme em uma grande roda de memórias, mesmo que o drama nunca se arrefeça em sua narrativa.
Confira uma playlist com as músicas que compões a trilha sonora de “As Boas Intenções”:
Veja o trailer:
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