Baile Perfumado

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Sinopse: Amigo íntimo do Padre Cícero (Jofre Soares), o mascate libanês Benjamin Abrahão (Duda Mamberti) decide filmar Lampião (Luís Carlos Vasconcelos) e todo seu bando, pois acredita que este filme o deixará muito rico. Após alguns contatos iniciais ele conversa diretamente com o famoso cangaceiro e expõe sua idéia, mas os sonhos do mascate são prejudicados pela ditadura do Estado Novo.
Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira
Título Original: Baile Perfumado (1997)
Gênero: Drama | História
Duração: 1h 33min
País: Brasil

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Brasileiro, o Cinema-Zumbi

Logo nos primeiros anos do período conhecido como Retomada do Cinema Brasileiro, a produção audiovisual do Recife trouxe realizadores que marcaram – e seguem contribuindo – para uma nova leitura da sociedade através da arte. “Baile Perfumado” foi a pedra fundamental para uma parte deles. Escrito e dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira (em roteiro ao lado de Hilton Lacerda), podemos considerar Marcelo Gomes e Cláudio Assis (que já recebeu uma retrospectiva da Apostila de Cinema com todos os seus longas-metragens) como parte deste encontro. Paradigmático no contexto do país nos anos 1990, o filme volta a ser exibido na edição de 2021 da CineOP, que tem esta década como temática histórica.

Ao longo do festival poderemos revisitar aspectos do Brasil noventista. Contudo, por ocasião de uma entrevista especial com Lírio Ferreira, nos antecipamos a esta revisitação. A produção, que começa com a morte de Padre Cícero, interpretado por Jofre Soares, demarca um reapropriação das narrativas do Nordeste – elemento fundamental na análise da historiografia do cinema nacional. Fruto de uma estética que apostava na alegoria política no Cinema Novo, parte da visão popular sobre as imagens da região ficaram marcadas por um olhar sudestino e exotizado de períodos anteriores. Na Era dos Estúdios, aventuras que usavam seus cenários como premissa fizeram sucesso – não apenas no mercado interno. “O Cangaceiro” (1953) foi um exemplo de obra cuja releitura crítica passou a questionar certas representações.

Esta cronologia foi objeto de um texto da edição 20 da revista Rosebud, com um artigo meu sobre o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, “O Pagador de Promessas” (1962), lembrando de um processo de concessão de respeito às manifestações populares de nossa cultura e figuras típicas de um país que precisa compreender sua complexidade. Porém, chegou um momento em que este tal processo se rompeu. Não apenas pela censura imposta pelo período de ditadura civil-militar, mas porque – de maneira eficiente – os detratores da arte conseguiram colocar um rótulo de erudição ou a politização enquanto elemento negativo de obras que, vejam só, não tinham apelo popular apenas pelo aspecto numérico e enquanto consequência deste auto boicote de uma nação. Quem já suspeitava, a partir das leituras de nossa produção textual, que não entendemos a Retomada como o melhor dos mundos, pode guardar consigo esta confirmação. De fato, há dinâmicas atravessadas nesse “renascimento” e não necessariamente envolvendo questões novas.

Porém, por mais que se repense o que há por trás de “Baile Perfumado“, é inevitável não reviver a aura entusiasmante em torno do filme lançado na segunda metade dos anos 1990 e vencedor de três candangos no Festival de Brasília de 1996 (melhor filme, ator coadjuvante para Aramis Trindade e cenografia para Adão Pinheiro). Testemunhávamos um Cinema Brasileiro com um longo futuro pela frente. Que, passados vinte e cinco anos, ainda resiste e – contra uma política de desmonte cada vez mais agressiva – floresce. Paulo Caldas e Lírio Ferreira unem pilares da cultura nordestina na figura do santo padre e de Lampião (Luiz Carlos Vasconcelos), em um prólogo que desemboca em imagens aérea ao som do manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi. É um chute na porta daqueles que, como grande mérito de suas carreiras, ocuparam um espaço que passou a ser questionado toda vez que outro olhar se apropriava dessas narrativas – como sempre o foi anteriormente. Retomando para si bases da identidade de uma sociedade que servia de paisagem apenas quando convinha.

Veja o Trailer:

Há algo ainda mais marcante, visto que “Baile Perfumado” não foge desta problematização do olhar estrangeiro. Faz isso com o protagonismo de Benjamin Abrahão (Duda Mamberti), libanês que se estabeleceu na região para ter contato e registrar a vida de Virgulino. Uma criação de memória a partir de uma ótica que segue como premissa de boas produções nacionais, como foi ano passado com o documentário “O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels“, pelas lentes do médico sanitarista (e na fotografia de José Medeiros). Aqui, as imagens de arquivo de Abrahão são pinçadas em pequena quantidade, diante de um público ainda pouco acostumado a tal junção de linguagens. Hoje soa até econômica a exploração desta forma. Além disso, “Baile Perfumado” usa como demarcador de tempo “A Filha do Advogado” (1926), uma das mais importantes obras audiovisuais da história de Pernambuco – talvez um pouco consciente de que o filme de Paulo e Lírio também seriam.

Sem exagerar em didatismos, o público consegue se conectar com facilidade a um contexto histórico do Brasil da época. Lembrando de um daqueles ciclos de progressos interrompidos (e por um de seus responsáveis, o Getúlio Vargas versão Estado Novo), o longa-metragem nos coloca no início de uma nova marola de avanços econômicos e sociais que teríamos pela frente. Tencionando algo mais imersivo sobre elementos que constituíam a época, o passado daquelas figuras são trazidas de maneira residual. Desde o alinhamento de Cícero e Lampião, até as consequências da política autoritária instalada em 1937. O filme está mais preocupado em trazer o deslumbramento por trás da magia da fotografia e no trabalho de orientação de Benjamin como alguém que persegue uma documentação orientada, mantendo sob controle o que deseja representar). Soma-se a isso o início do alastramento de força midiática em personalidades a partir de modernas linguagens – e como Virgulino representa parte do que há de novo no egocentrismo oriundo desta realidade.

De quebra, trata um pouco do que seria o presente do audiovisual enquanto política de Estado, que começava a dar frutos ao aprimorar a Lei Sarney com e promulgar em 1991 a Lei de Incentivo à Cultura (conhecida como Lei Rouanet). Transporta uma realidade de mecenato na figura de Ademar Albuquerque (Germano Haiut), investidor mais preocupado com o eventual retorno financeiro de uma produção que acompanharia as aventuras de Lampião do que no impacto da arte a partir deste registro. Uma forma embrionária de se produzir cultura, revisitava na outra ponta, criando mais um elo de fomento aos debates envolvendo o Cinema Brasileiro desde então. A mesma transformação de consciência política que nos deu “Baile Perfumado” como obra icônica de um período, transformou “Chatô, o Rei do Brasil” (2015) em uma novela de mais de vinte anos, por exemplo.

Nas escolhas técnicas da dupla de cineastas, as análises críticas das duas décadas e meia que o seguiram já o fizeram bastante. Rever o filme é um reencontro com a câmera exploratória, um frescor de descoberta de uma geração de realizadores que, dispostos a encarar suas criações como acertos e erros, foram marcadas pela coragem. A Retomada tinha um pouco de olhar flutuante, uma inquietude que não nos deixa parado, mas não sacode as estruturas a ponto de nos desorientar. Uma modernidade clássica – ou com classe. Algo pouco visto nos últimos anos, mas também um pouco da marca de obras contemporâneas como “Benzinho” (2018), de Gustavo Pizzi.

Há dois volumes de uma obra partida ao meio aqui. Quando Benjamin ganha a confiança de Lampião, Paulo Caldas e Lírio Ferreira transformam a segunda metade do longa-metragem em algo ligeiramente mais imersivo, tirando um pouco o controle do libanês. Ao passar a conviver com a realidade de Virgulino, ele observa que seria injusto suprir as lacunas apenas pela projeção do seu olhar. Na conversa com o Coronel, em um jogo de cartas que parece um pouco o xadrez da morte, o protagonista finalmente se torna um agente passivo. É quando as imagens reais começam a ganhar mais força e tornar inquestionável que estamos diante de um fenômeno imortalizado através dos registros.

A Nação Zumbi, que perderia Chico Science, falecido em fevereiro de 1997, consolida essa nova estrutura com “Sangue de Bairro” e traria um outro tipo de deslumbramento a este crítico no início da adolescência obcecado por tudo o que passava na MTV. “Baile Perfumado“, se pensado sob esse aspecto, não deixa de ser uma carta de intenções do cinema recifense, sobre a melhor forma de preenchermos – enquanto produtores de memórias – as lacunas que surgem.

Veja o clipe de “Sangue de Bairro”:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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