Sinopse: O Baixio das Bestas traz uma comunidade retrógrada e moralmente decadente a partir do olhar de Auxiliadora (Mariah Teixeira), uma jovem abusada e explorada pelo avô e de outras figuras locais, envolvidas no caos da própria existência.
Direção: Cláudio Assis
Título Original: Baixio das Bestas (2006)
Gênero: Drama
Duração: 1h 20min
País: Brasil
Sujeiras Embaixo dos Tapetes
Quando apresentado no 39º Festival de Brasília em 2006, “Baixio das Bestas” já provocou reações adversas da plateia. O diretor Cláudio Assis comemorou a recepção antagônica e extremista, entendendo ter alcançado o objetivo da sua obra. Passados quase quinze anos, é difícil imaginar que um cineasta, em seu segundo longa-metragem, pudesse receber tantos afagos quanto o que lhe fez ser dono de seis troféus daquele festival, inclusive o de melhor filme. Há fatores que ultrapassam a mera percepção sobre uma produção que pesam cada vez mais no olhar crítico. Não estamos aqui para sentenciar qualquer questão – até porque trata-se de uma revisitação.
O primeiro ponto é que um realizador é cada vez mais multiplamente qualificado, posto que emissor de mensagens. Assis em sua aludida obra-prima “Amarelo Manga” traz ao centro o Estado de Pernambuco (em especial a capital Recife), que surge quase como um movimento cinematográfico institucionalizado naquele período. Uma geração que nos brindou, além do próprio cineasta, com nomes como Irandhir Santos e Hilton Lacerda. Um marco importante de visibilidade (quiçá descobrimento) da riqueza cultural do Nordeste contemporâneo.
Por isso, o diretor não quis um projeto que ousasse menos que sua premiada obra anterior. Ousadias narrativas e de linguagem já questionadas à época de seu lançamento em 2006. Nos olhos de 2020 (que não o serão em 2035, podem ter certeza) “Baixio de Bestas” soa como um mecanismo envelhecido, com lampejos espetaculares da criatividade de uma peça fundamental do Cinema Brasileiro do século XXI.
Assis brilha ao trazer de forma dinâmica (ao seu modo) a sociedade que quer retratar. Entender o diálogo inicial como um portal para um mundo carregado de conservadorismo, misoginia e falta de apreço pela arte é fundamental para que a plateia não se envolva tão sentimentalmente com a moral da obra que faça se perder em ilações desnecessárias sobre suas reais intenções. Aqueles dois senhores falando sobre os programas policialescos da televisão e como a sociedade sente falta de “homens que gritam alto” é uma fotografia, onde se enxerga elementos basilares do local que dá nome do filme. Pensando bem, talvez nem seja necessário atravessar qualquer portal do ponto onde estamos hoje.
Todavia, o diretor entende, sim, que precisamos entrar em um mundo. Até porque, quando falamos de “Amarelo Manga”, entendemos que o Assis do ano 2000 vê um país à beira de uma redenção, passadas duas décadas, nunca se atingiu. O cineasta, à época da concepção de “Baixio das Bestas” com 40 e poucos anos, não é inocente ao explorar uma decadência estrutural da sociedade usando o sexo como choque narrativo – chegando até a aproveitar fragmentos de um vídeo pornográfico.
A câmera interesseira de seu primeiro longa-metragem passa a ser exploratória aqui. Ela quer ficar no ambiente enquanto perdura a lascívia, testando os limites do espectador. Com especial apreço pelo estupro e pela violência sexual, a obra se revela estilizada, com planos artisticamente pensados para as sequências mais cruéis com as mulheres em cena. Um fetichismo que, em algumas cenas do miolo do filme, surge quase como esquetes. As referências da produção nacional da segunda metade dos anos 60 e início dos anos 70 na montagem de “Amarelo Manga” viajam para o obscuro período de desbunde gratuito da Boca do Lixo.
Ninguém admitirá isso, mas é possível que alguns envolvidos em “Baixio das Bestas” entendam que as tintas soam (ou sempre soaram) exageradas. O que antes se via como uma gostosa imoralidade, um exercício de prazer do espectador, hoje é um artifício narrativo cansativo – e violador. Na meia hora final, há um caminhar importante no foco à cultura pernambucana, em especial o maracatu. Assis parece até resgatar dentro de si o cineasta inventivo e provocante a partir do frescor de seu primeiro longa-metragem. Esse foco no regionalismo não perdura e a obra se serve novamente como uma laranja mecânica tupiniquim em ato contínuo.
Com personagens menos complexos, alguns beirando o genérico e uma protagonista pensada quase como um objeto cênico, “Baixio das Bestas” pode ser entendido tanto como eficiente na sua proposta de criar sensações, quanto como um desfile de sequências de perturbação gratuita. Acreditamos que nenhuma das duas visões se anulam ou nem mesmo demarcam qualquer demérito à obra. É apenas mais um alerta da arte brasileira do passado de que o mar de tranquilidade que a Cultura acreditava navegar naquele período escondia embaixo do tapete uma sociedade que sempre a viu como inimiga.