Boca a Boca | 1ª Temporada

Boca a Boca

Sinopse: A primeira temporada de “Boca a Boca” nos apresenta uma cidade do interior, dividia entre sede e colônia, em que uma doença altamente contagiosa se manifesta em Bel (Luana Nastas). Seu método de contágio é a troca de saliva, uma revelação que expõe a hipocrisia dos moradores da localidade.
Criação: Esmir Filho
Direção: Esmir Filho (episódios 1-4) e Juliana Rojas (episódios 5-6)
Título Original: Boca a Boca | 1ª Temporada (2020)
Gênero: Thriller Distópico
Duração: 4h e 5min (dividido em seis episódios)
País: Brasil

Boca a Boca Netflix

O Agro e o Pop

Atenção: a crítica da temporada da série a trata em sua integralidade, portanto, possui grandes spoilers da trama.

A Netflix, em sua proposta de produção de conteúdo regional, tem reservado ao Brasil obras que trazem uma narrativa passível de universalização. Foi assim com “3%“, que transpôs uma roteirização de um jovem Pedro Aguilera e que encontrou boa receptividade no mercado estrangeiro – a caminho da sua quarta temporada. “Boca a Boca” vai por esse caminho, com o adicional de ser quase um ato preparatório para a ampliação do alcance do talento de Juliana Rojas, diretora dos dois episódios finais do seriado criado e desenvolvido por Esmir Filho.

O programa gira em torno de um grupo de quatro amigos. Fran (Iza Moreira) acorda de madrugada e encontra a amiga Bel (Luana Nastas) passando mal, com uma ferida estranha no rosto. Já Chico (Michel Joelsas) não levanta nem com os insistentes toques de seu despertador. Co-responsável pela criação do irmão Quim (Kevin Vechiatto), ele não cumpre sua função de ajudar o menino a se alimentar e se vestir para a escola, sendo de imediato reprimido pelo pai. Chico chegará atrasado na aula e aqui somos apresentado à Escola Modelo da Cidade de Progresso, nos ambientando em uma localidade ultraconservadora, que, pelo menos, superou a binaridade azul x rosa, adotando a segunda cor como uniforme de todos os alunos.

Esmir Filho constrói visualmente “Boca a Boca” a partir da sobriedade dos tons pastéis, tendo o verde acompanhado o rosa sempre que possível. Essa ausência de vida dentro dos limites da escola se oporá ao que os adolescentes querem para si fora dali. Bel ficou doente a partir da troca de saliva e aos poucos nos é mostrado o quanto aqueles jovens se libertaram em uma festa carregada de fluidez. Quando Chico, usado como protagonista do primeiro episódio para transitar por todos os ambientes, conversa com Guiomar (Denise Fraga), a diretora da escola que entende que progredir é trocar as clássicas cadeiras por bolas de pilates (e fala no “respeito ao avô” do garoto, demonstrando que há uma dita linhagem nobre ali). Ela o define como um menino que possui o “ímpeto de ir atrás do desconhecido“. Só que sabemos que todo o adolescente tem essa mantra ou essa premissa em seu caminhar.

A partir desse início de inquisição da diretora para tentar descobrir a origem da doença de Bel, a série usa os flashbacks da festa do beijo não apenas como elemento narrativo, mas como quebra da linearidade sóbria. Os pais dos alunos em nenhum momento transitam pelo ambiente escolar, preferindo trocar suas impressões em uma academia de arquitetura industrial – deixando claro que há uma preocupação em tornar o espaço educacional não somente um lugar de normas rígidas e conservadorismo, mas dar um toque de conto de fadas, adiando a realidade dura da vida adulta. Alex (Caio Horowicz), filho do ricaço Doni (Bruno Garcia) completa o grupo, um menino que passa a sensação de assexualidade, diz não beijar ninguém – mas se envolverá com Maurílio (Thomas Aquino), que encerra o episódio piloto sendo apresentado ao lado de Dalva (Grace Passô).

Denise e Caio Netflix

Depois de um início regado de elementos estéticos e uma trilha moldada para a geração fluida, com Letrux e Trupe Chá de Boldo, “Boca a Boca” foge de um padrão e entrega um segundo episódio bem mais longo. Por sinal, uma dos benefícios de programas pensados para o streaming é acabar com a rigidez temporal e com uma fórmula pensada para desenvolver plots por vezes desnecessários e em outras antecipados (ou irritantemente adiados). Nesse ponto, a universalidade da obra ganha força. Começa quando os alunos da Escola Modelo passam a tratar a doença de Bel como o início de uma epidemia. Aqui há dois elementos interessantes criados por Esmir Filho. O primeiro é o aplicativo do Mapa do Beijo, uma maneira ultramoderna de se tentar conter uma doença a partir do mapeamento de quem beijou quem.

Dentro de um cenário de pandemia, essa criação do roteiro consegue finalmente dar o toque distópico na obra. O outro elemento é na sequência em que os personagens procuram sinais de sintomas ou possíveis infecções nas outras pessoas. E não conseguem encontrar. A pluralidade de corpos, que não é a tônica da série, aparece exatamente aqui, em um claro sinal de que – na cabeça pré-2020 – uma doença como essa nos igualaria.

Esse ponto é curioso porque passamos por ele há alguns meses. Quando a Covid-19 nos atingiu e limitou todas as nossas ações, as primeiras vítimas eram os mais ricos. Seria lógico que uma doença trazida de outros países, notadamente da Europa, se manifestasse primeiro em que lá estivesse. Isso gerou essa mesma idealização utópica de que a sociedade se organizaria e se movimentaria a favor da exterminação do vírus o quanto antes, já que basta ele circular para afetar a todos. Em “Boca a Boca“, assim como na vida real, isso se mostrou rapidamente um erro de cálculo. Porque um fator, que muitos levantaram por aqui – e que também acontece na série – é o da normalização. Outro é a diferença de classes.

No terceiro episódio essa diferença fica mais latente quando Manu (Esther Tinman), uma das adolescentes infectadas, finge que está em viagem aos Estados Unidos quando, na verdade, foi se tratar com os métodos mais avançados. Uma situação que nos leva a grande virada da trama, já no “setor Juliana Rojas” do programa – e tratado mais a frente. Nesse ponto do seriado, ainda há essa ambientação necessária, o verniz “Black Mirror” (2011-2019) feito para intrigar (e é impressionante como os sintetizadores nos levam ao caminho da ficção e da distopia desde o final dos anos 1970). A relação de poder ganha nomes quando é dito “aqui é patrão x empregado, é sede x colônia“.

Curiosamente, o episódio mais longo (o segundo) é aquele que se vale de uma inserção de elementos (como do aplicativo já citado e o de fake news) para ser o mais estacionado dentre eles. Porém, há uma eficiência na construção narrativa e na ambientação aqui que – ao mesmo tempo em que afasta os menos pacientes ou desinteressados nas temáticas ou formas de exploração delas – comunga com outros programas de televisão. A relação entre os adolescentes e suas investidas noturnas traz uma vinculação natural com “Riverdale” (2017-), mas o mistério mal resolvido ser menos mundano, como saberemos com o desenrolar dos episódios, o tornam igualmente próximos de “Buffy, a Caça-Vampiros” (1997-2003) e até de “Prova Final” (1998), longa-metragem adolescente que consolidou a carreira de Robert Rodriguez nos Estados Unidos após a boa receptividade de “Um Drink no Inferno” (1996).

Bruno Garcia Netflix

Como não poderia deixar de ser, os jovens encaram muito mal uma doença que depende deles para ser contida. Inconsequentes como regra, eles passam a socializar os riscos, em uma conduta negacionista de criar um Desafio do Beijo, com hashtag e tudo. Nesse clima o terceiro episódio tem início com o objetivo de expor a hipocrisia daquela comunidade. O entendimento acerca da doença gera o pânico e há um enquadramento muito inspirado e pertinente após essa consolidação. É quando Guiomar, a diretora da escola, vai passar álcool gel na mão e o pote ganha a tela de forma plena.

Essa possibilidade de entender a atitude dos jovens no meio de uma epidemia, apelidada de Festa do Beijo, não tem encontrado amparo na sociedade que convive com o coronavírus. Interessante observar como qualquer perspectiva ficcional provoca debates que passam ao largo quando lidamos com a realidade. É nesse ponto que as metáforas e relações paralelas entre a cidade de Progresso e o Brasil do governo Jair Bolsonaro se tornam mais frequentes em “Boca a Boca”. Doni, personagem de Bruno Garcia, pronuncia algumas expressões como uma espécie de consolidação disso (da já citada fake news até um literal “tá ok?” em uma conversa com o filho no terceiro episódio). Claro que a tonalidade de figurino e dos cenários acompanharam essa maneira sombria, o que na parte final da série ocupará ainda mais espaço.

Ele, criador de gado, parece surgir como um líder entre os antagonistas, mas isso não é explorado a fundo. Aliás, a série como um todo evita se valer dessas âncoras de comportamento, o que traz tanto o personagem de Bruno como o de Denise Fraga uma vilania internalizada, totalmente coerente com a forma hipócrita com a qual eles aplicam suas ações. É provável que um desdobramento do passado seja possível em temporadas futuras do programa, mas a escolha de perpassar essas questões é um acerto nesse primeiro momento.

Até porque qualquer ampliação dessas referências poderiam tornar “Boca a Boca” algo mais caricato. Doni é criador de gado – e na segunda metade da série não resta dúvidas de que o apelido dos eleitores-seguidores do Presidente da República serviu de inspiração. No episódio final, Bruno Garcia diz em discurso que “o Brasil que a gente quer é um em que seu gado seja mais nobre” e o recado está dado. Na escola os adolescentes aprendem que “a sociedade é um corpo social e a família é uma célula“, comparando a chegada de Chico (que passou a morar com o pai em Progresso há pouco tempo) a um câncer – sem o dizer com tais palavras, ousadas demais para os hipócritas.

Nessa maneira de construir suas relações com menos verbalidade, Esmir Filho desenvolve uma obra recheada de intenções. Alguns podem dizer que elas são frágeis ou superficiais – até mesmo inocentes. Mas a abordagem tal qual é feita contempla essa maneira universalista, sem deixar de funcionar para o espectador brasileiro.

Boca a Boca Imagem

Quando a segunda metade de “Boca a Boca” começa, parecemos viver uma espécie de transição. Usando mais cenas na “colônia”,  com elementos de floresta e flertando com a fantasia, Juliana Rojas parece mais presente. E assim o está, visto que o quarto episódio é por ela roteirizado (ainda dirigido por Esmir) e os dois últimos são por ela tocados. O cineasta prepara o terreno desde a primeira sequência, com uma espécie de “terror neon” que parecia que seria o tom desde o início. A montagem é bem mais angustiante e seu objetivo claro é criar expectativas.

É aqui que Grace Passô tem seu grande momento. Dalva, mãe de Fran, possui o tempo de tela que lhe cabe – visto que já falamos que todas as relações entre adultos, chefes e patrões, é um pano de fundo da trama. Só que um talento desses não pode ser apenas uma personagem de ligação. Esmir e Juliana, então, quebram essa nova ambientação dentro da obra quase ao final do quarto episódio, inserindo um emocionante cena com a atriz. Claro que o peso da direção faz toda a diferença. Observamos que Rojas pode ter concebido a ideia por trás desses momentos do seriado, mas o estilismo carregado deve ser reputado ao diretor, que passa o bastão para uma maneira bem mais densa de construção de imagens nos episódios finais.

O clímax vem quando o arco da revolta juvenil se consolida em um tipo de missão de resgate, tal qual os derradeiros momentos de “Years and Years” (2019) ou a concebida por Francis Lawrence para o início de “Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1” (2014). É nesse contexto que a obra quer se inserir e após esse encontro é que o caminho para o mistério e o realismo fantástico que a realizadora brasileira tanto domina ganhará destaque. Rojas consegue trazer a expectativa como elemento central com muita facilidade e desse ponto até o término da primeira temporada de “Boca a Boca” não é diferente.

No limite do tempo, o seriado nos transporta para a floresta, revelando mutações genéticas de animais e a possibilidade de manter a doença originalmente apresentada a partir de Bel sob controle. Com sequelas, o que automaticamente permitirá que uma nova classe de pessoas, um grupo formado majoritariamente por jovens que – os mais antigos dirão – pagarão pelo resto da vida o preço da libertinagem. Fazendo o exercício por vezes chato (e quase sempre frustrante) de futurologia, a série tende a um aprofundamento mais imaginativo em questões mais sociais se a segunda temporada for desenvolvida.

Por mais que deixe para o espectador ansioso por conclusões um sentimento de pontas soltas, o programa consegue dizer ao que veio. Traz a sociedade conservadora e hipócrita brasileira escancarada com sobriedade, deixa como lição de que os reais interessados na busca pela verdade encontrará as soluções em nossa própria origem e mesmo assim cumpre com o apelo pela distribuição internacional que faz a Netflix optar pelo lançamento de produtos como “Boca a Boca“.

Ouça o episódio do Apostila Revisa em que conversamos sobre a primeira temporada da série:

Se preferir, assista em vídeo o programa direto do nosso canal no YouTube:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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