Border

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Sinopse: Em “Border”, a policial Tina trabalha em um aeroporto averiguando bagagens na alfândega. Apesar de contar com habilidades especiais, como um olfato super desenvolvido e uma intuição aguçada, a policial sofre com deformidades decorrentes de um raio que a atingiu na infância.
Direção: Ali Assabi
Título Original: Gräns (2018)
Gênero: Drama | Fantasia
Duração: 1h 50min
País: Suécia | Dinamarca

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O Homem é o Lobo do Homem?

Admito que não sabia se começaria com Hobbes e chamaria a sociologia ou iria nadar nos mares abertos da psicologia para falar de Border. No fim, pelo menos para o título, ganhou a sociologia. Ambas ciências, no entanto, permeiam a narrativa do filme desde seu início até a cena final. Com uma sinopse um tanto inabitual, “Border” ganhou minhas atenções logo de saída, em seu trailer para os cinemas. Somente consegui vê-lo agora com a retomada dos melhores filmes do ano passado pelo Sesc no ,já clássico Festival Sesc Melhores filmes.

Além de trazer a inquietação por não ter sido visto no cinema, já que o filme conta com uma bela fotografia e uma movimentação de câmera que mereciam uma ambiência melhor que a tela de meu computador, ele traz em si mesmo reflexões importantes para nossa realidade incerta. Jorge Cruz, na crítica de “Estratos Fantasmas“, comenta que parecemos viver à beira do precipício. Filme do indiano-dinamarquês, Ali Abbasi, Border também parece explorar essas fronteiras entre o possível e o impossível, entre o humano e o animal, entre o social e o instinto. Por isso, trouxe Thomas Hobbes para nos lembrar que dentro de toda sociedade há uma potência pelo “não-social” ou pelo “não-humano” que permanece viva.

O nome original, Gräns, tal qual o nome em inglês, “Border“, significa limite. A palavra, mantém uma relação entre o que fica e o que extrapola a linha imaginária que traçamos para delimitar a humanidade de um ser. Essa linha, que é constantemente renegociada pelas sociedades e pelo todo social ( as múltiplas sociedades eu habitam a Terra) constitui nossa maneira de ser e de sentir. Quanto melhor formos adequados ou educados pelos que nos cercam, mais nos sentiremos integrantes dessa complexa regra e , logo, integrantes do grupo que as constituiu.

Assim, o todo alimenta nossas ações e, nós, como estruturas micro dessa ignição, alimentamos o todo. Parece difícil de explicar, não? Porque é mesmo. Às vezes, nem toda teoria social é capaz de prever quando as regras estão prestes a mudar. Outras, a própria reação biológica de nosso planeta nos força a mudar de rumo. Mas, precisamos de algo exterior que nos destrua ou existe em nós mesmos uma latente força autodestrutiva?

Muito interessante que, logo nessa semana, tenha vindo parar em minhas mãos um texto do cientista político Bernard Harcourt no qual ele discute as relações de civilidade e incivilidade no meio político.  Mesmo que não tenha feito de imediato essa relação a leitura e  o posterior debate fizeram com que minha experiência cinematográfica fosse pautada pelo paralelo possível entre o que constitui o ser civil, o ser sociável e que opta pelo debate cordial e, o que se aproxima das paixões mais exaltadas se relacionando com  o que convencionamos chamar de incivil. O incivil é, muitas vezes, lido como essa potência animal que tanto Tina quanto Vore trazem à tela em Border. Por isso, podemos agradecer à maquiagem, mas também à atuação de Eva Melander (Tina) e Eero Milonoff (Vore) que conseguem dar o tom certo ao comportamento limite dos seres que encarnam.

Tina nos é apresentada como uma policial que atua quase como cão farejador em um aeroporto. Com habilidades que a tornam peculiar, como um olfato extremamente aguçado e uma percepção sobre os sentimentos das pessoas bem mais certeira, a mulher parece perfeita para o cargo. No entanto, ela convive também com deformidades que acreditamos ser decorrentes de um raio que a acertou na infância. O direto Ali Abbasi nos dá pistas de que a história não se trata somente disso, mas ficamos perdidos até a introdução de Vore na narrativa.

É somente nesse momento que a personagem e, também nós percebemos que podem haver outros seres como ela. Assim, Tina se sente impelida a trazer Vore para sua vida. O homem se mostra menos adaptado à vida social. Algo da vida animal reside em Vore com mais potência.

A ideia de um arquétipo junguiano do lobo ou dos animais caninos selvagens, aqueles que no remetem à uma paixão intuitiva e também mais voraz, traz a um corpo quase humano instintos com os quais contávamos quando começamos a habitar o planeta. O faro e o sentimento intenso do perigo residem adormecidos em Tina e Vore chega para afastá-la de sentimentos como o medo e a culpa que são percebidos por ela, mas também fazem parte de sua personalidade retraída. A chegada de Vore aflora em Tina todo instinto e sua sensação de que é mais forte do que o medo.

Ela se permite sentir um prazer que para muitos de nós poderia ser julgado como anormal ou “não-humano”, já que a própria constituição de seu corpo ultrapassa esse conceito. O que a faria humana, afinal?  Vore parece ter uma resposta pronta: Nada. E nós? Poderíamos lidar com as diferenças que um ser como Tina nos traria? A fábula moderna é apenas uma fagulha para essa discussão que se mostra sempre atual e, para além de todos critérios técnicos, o filme conta uma estrutura narrativa e uma premissa muito fortes que o fazem um dos filmes mais estranhos dos últimos anos- e isso, claro , é um elogio.  Por isso chamou atenção em Cannes, ganhando o prêmio “Um certo Olhar” de 2018, dado pelos jurados.

Talvez os estranhos fantasmas que são acordados por “Border” façam parte de nossa própria construção social. E, talvez, seja hora de rediscuti-los.

Veja o trailer:

Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.

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