Sinopse: Em “Brazil: O Filme”, Sam Lowry (Jonathan Pryce) vive num Estado totalitário, controlado pelos computadores e pela burocracia. Neste Estado, que lida com o terrorismo, todos são governados por fichas e cartões de crédito e ainda precisam pagar por tudo, até mesmo a permanência na prisão. Neste mundo opressivo Sam acaba se apaixonando por Jill (Kim Greist), uma terrorista.
Direção: Terry Gillian
Título Original: Brazil (1985)
Gênero: Ficção
Duração: 2h 12min
País: Reino Unido | EUA
Terry Inzoneiro
Terry Gilliam mirou em uma cesta e acertou em várias quando realizou “Brazil: O Filme“, agora disponível no catálogo do Petra Belas Artes à La Carte. A começar pelo nome da produção lançada em 1985 e indicada a dois Oscars (direção de arte e roteiro) e vencedor dos BAFTAS de efeitos visuais e design de produção. Ao mostrar uma sociedade distópica em que o poder dos avanços tecnológicos se transformou em opressão e (ainda) mais burocracia estatal, mal sabia ele que dialogaria com nosso país – mesmo que a intenção tenha sido exatamente oposta.
Isso porque, na letra da versão em inglês de “Aquarela do Brasil“, as terras oprimidas pelos portugueses do novo continente na virada do século XVI fez o letrista norte-americana S.K. Russell questionar se “aquela visão vive na sua imaginação“. Com isso, a única solução do protagonista Sam Lowry (Jonathan Pryce) seria chegar naquele território de alguma forma. Até a revelação desta conexão nos créditos finais, a trilha musical clássica composta por Ary Barroso aparece inúmeras vezes. Com poucas mexidas e, mesmo assim, muitas conexões em uma trama que conecta fantasia, aventura, romance e suspense. O longa-metragem possui linguagem e estética das ficções oitentistas realizada por mestres que uniram os argumentos futuristas construídos pela literatura no passado e a antecipação de dilemas da realidade vivida por nós.
Portanto, não é apenas na temática que “Brazil: O Filme” encontra paralelos com “Fahrenheit 451” (1966) de François Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury; ou de “Eles Vivem” (1988), hoje tido como clássico absoluto da filmografia de John Carpenter. Gilliam usa o exagero narrativo e a performance de seu elenco talentoso para suprir as limitações de produção e de efeitos – ainda dependentes de maquetes e explosões atravessadas. Mas se vale também do uso inspirado do jogo de luz e sombras, ampliando as dimensões dos cenários, bebendo ainda da fonte do Expressionismo, que a era do CGI se mostra incapaz de replicar.
Parece que a forma de fazer, costurada em filmes como “Metrópolis” (1927) de Fritz Lang, começava a morrer ali e a abordagem fria e falsa (de um jeito ainda bem esquisito) tão criticada quando “Capitão Sky e o Mundo do Amanhã” (2004) nos assombrou quando chegou aos cinemas tenha, de fato, vencido. Não o cineasta Kerry Conran, que nunca mais emplacou um projeto em Hollywood – e nessa longa e interessante entrevista ele fala sobre a linguagem e a estética que nascia ali, os custos de produção e a decepção com a carreira pelo fracasso do filme.
A sociedade na qual a obra nos insere é extremamente automatizada e punitivista. O protagonista consegue um novo cargo no Ministério das Informações, após um erro escandaloso de uma das máquinas que, pela troca de um caractere (após um besouro morto cair em um dos computadores), cometeu uma injustiça – requisitando a pessoa errada. Algo que o Estado jamais admitirá, ainda mais porque essa requisição gera custos que deverão ser arcados pelo cidadão. Quando a música aparece pela primeira vez, somos apresentados a um Sam sonhador, que imagina estar voando até a vida real lhe puxar para baixo. Ali começa a conexão com o presente que transforma o longa-metragem bem menos utópico (e distópico) do que as leituras de três décadas atrás. Nos primeiros movimentos ao longo do dia, temos um indivíduo amplamente controlado pela tecnologia e com seu comportamento condicionado por ela.
Em uma das sequências mais icônicas do filme ele conversa com sua mãe, Ida (Katherine Helmond), que aparece toda esticada, na antecipação das possibilidades de mudanças provocadas pelas cirurgias plásticas (ainda um dispositivo limitado a poucas operações e apenas para pessoas de alto poder aquisitivo). Uma vaidade que a fará uma das pessoas que contribuirão com a derrocada de Lowry mais a frente, ao se negar a interceder enquanto mãe quando ele mais precisa. Um ciclo de criação de novas personalidades de forte diálogo com a contemporaneidade.
Quando Jill (Kim Greist) entra em cena – e a partir de sua fuga – não apenas o romance, mas a comédia ganha melhores contornos. A partir da credibilidade que Sam deve debruçar sobre o conteúdo da caixa que a suposta terrorista carrega podemos encontrar um dos principais legados de uma comunidade partida e governada com autoritarismo: a falta de confiança. Ao fazer uma ciranda de gêneros, o filme parece aproximar o pastiche e as gags inesquecíveis do período anterior da carreira do cineasta com a busca por outro viés de arte política, menos desbundante, que lhe seguiu. “Brazil: O Filme” está longe de ser a criação mais engraçada de Gilliam, mas talvez seja, até hoje, aquela com simbologias e mensagens mais eficientes sobre o Estado enquanto agente opressor.
Outro destaque é a participação de Robert De Niro como Harry Tuttle, aquele que consegue se livrar da perseguição das autoridades pelo erro de caractere. Isso porque ele não é apenas um foragido e sim uma espécie de soldado solitário, na resistência à lógica burocratizada e sufocante do poder. Ele surge para bagunçar o sistema, hackeando de qualquer forma o que encontrar pela frente. A equipe de produção teve dificuldades de se adaptar ao perfeccionismo e à busca pela imersão total na personalidade do personagem que o ator, um exemplo do uso do método de Stanislavski, não abre não.
Enquanto legado de produção, “Brazil: O Filme” se tornou um dos filmes preferidos de River Phoenix que, assim como De Niro, quis trabalhar com Gilliam de qualquer forma. O ator Jonathan Pryce, que filmava com ele “Dark Blood“, thriller de George Sluizer lançado em 2012, dezenove anos após a morte do talentoso e premiado jovem, conseguiu um encontro com Terry. Ele aconteceria na tarde de 31 de outubro de 1993. Porém, naquela madrugada ele morreria após uma overdose na boate Viper Room, em Hollywood.
Quem assiste o resultado final não imagina o nível de estresse de Gilliam, que chegou a ter paralisia nas pernas dada a pressão no set. Depois dos anos 1970 e início dos 80 com muito sucesso junto ao grupo Monty Python, seu voo solo é, até hoje, uma de suas criações mais ousadas. Alguns dizem que esse é o segundo capítulo de um conjunto de produções do cineastas chamado de “Trilogia da Imaginação”, sendo antecedido por “Os Bandidos do Tempo” (1981) e precedido por “Aventuras do Barão Munchausen” (1988). Porém, o realizador prefere dizer ser primeira parte de uma trilogia de sátira distópica, ao lado de “Os 12 Macacos” (1995) e “O Teorema Zero” (2013).
Com forte carga referencia a “1984”, livro clássico de George Orwell, seu lançamento em 1985 não foi por acaso. Aqui a Universal Pictures quase destruiu a criatividade de Gilliam no corte final, em uma pós-produção difícil, de inúmeros adiamentos. O resultado só refletiu os desejos do diretor após a circulação de uma cópia entre os críticos norte-americanos, que se empolgaram com o visual e a narrativa do jeito como elas eram apresentadas – facilitando o desengavetamento e o lançamento sem tantas intervenções por Sid Sheinberg, executivo do estúdio.
Depois, essa confusão virou um livro: “A Batalha do Brasil: Terry Gilliam vs. Universal Pictures na Luta para o Corte Final” (título traduzido, já que a obra nunca foi lançada no país). Ou seja, além de tudo, qualquer análise do longa-metragem passa pelas reflexões sobre as dinâmicas do cinema enquanto produto, das interferências na arte, em uma verdadeira luta para que os desejos de seus realizadores sejam atendidos. Sob o manto de investidor e a desculpa da criação coletiva, essa não foi a primeira – e está longe de ser a última – vez em que engravatados (termo que já denota a misoginia do setor) jogarão contra seus próprios projetos.
A grande questão envolvendo a batalha sobre o corte do estúdio é o final pessimista, mantido a muito custa. Afinal, sempre houve dificuldade em se perceber o ambiente onírico ou a representação que foge do realismo como espaço em que metáforas se alinham ao substancial. O fato é que tudo ali soa menos irônico e alegórico em recentes revisitações. Talvez enquanto sociedade já tenhamos atingido parte do absurdo representado e antecipado por “Brazil: O Filme“. Ou apenas naturalizamos essas leituras enquanto possibilidades de narrativas audiovisuais.
Que bom que não há uma resposta certa, porque meu voto é que os dois aspectos são relevantes para explicar porque algo que parecia tão esquisito e, em parte, incompreensível e devastador enquanto mensagem há tão pouco tempo se tornou magistral e brilhante na loucura do futuro no qual estamos.
Veja o Trailer: