Danças Negras

Danças Negras Documentário Crítica Filme Poster

Sinopse: O documentário propõe um debate sobre a presença da cultura negra na contemporaneidade, bem como, os diversos paradoxos encontrados no ambiente de uma sociedade marcada por uma tradição racista e escravocrata.
Direção: João Nascimento e Firmino Pitanga
Título Original: Danças Negras (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Brasil

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Mais do que um Grito

Haverá o dia, talvez daqui a algumas centenas de anos, que os habitantes deste território finalmente entenderão que a melhor solução para o país é uma refundação. Quando esse dia chegar, talvez “Danças Negras” se transforme, por fim, em um documento histórico e deixe de carregar consigo a ideia de uma convocação. O convite à reflexão, com conteúdo de aula em forma de documentário dirigido por João Nascimento e Firmino Pitanga, traça um panorama contemporâneo dos corpos negros em transição na sociedade brasileira. Uso os movimentos das expressões artísticas como mote, mas vai bem além disso. Chegando aos cinemas na semana do 7 de setembro, comemorado enquanto Independência há 199 anos e que há 27 recebeu como contraponto o Grito dos Excluídos.

É quase como se unisse depoimentos que remete às falas de “Swingueira” (2020) em relação ao ritmo; nas origens ancestrais da cultura de um povo em diálogo com “Cavalo de Santo” (2021); pela necessidade de ocupação de espaços acadêmicos em continuidade às ações afirmativas como em “Quadro Negro” (2020); e na potência dos sons e bailados que hipnotiza quem assiste “Cavalo” (2020). É notório que há em curso uma filmografia que reúne um grupo de realizadores imbuídos na missão de traçar tal historiografia e a oferecer como ferramenta de empoderamento.

Danças Negras” talvez seja uma das obras mais representativas porque reúne grandes autoridades nos temas que aborda, tais como: Kabengele Munanga, Raquel Trindade, Makota Valdina e Salloma Salomão (esse que já contribuiu para o audiovisual enquanto músico em trilhas sonoras premiadas, como o de “Todos os Mortos“). Dentro das características de suas falas, a maneira como os discursos simplificam seu estilo, no objetivo de atingir a um grupo cada vez maior. Afinal, se há um grande círculo que contempla os diversos assuntos do longa-metragem, ele terá expressões como “reconhecimento” e “pertencimento” em sua base. Em pouco mais de uma hora, aquele grupo faz repensar desde a deslegitimidade dos ritmos que fugiam da arte eurocêntrica até o uso de palavras e seus significados.

Em uma das semânticas mais desconstruídas nos últimos tempos, a troca de “escravos” por “escravizados”. Nomenclatura capaz de fazer repensar a verbalização automática nas gerações educadas para reproduzir – e, por consequência, todo o aprendizado sobre o passado do Brasil tal qual lhe foi oferecido. Para as futuras gerações, o fim de um ciclo de naturalização do racismo, mesmo que por uma ótica. Até porque já nos demos conta da forma estrutural pelo qual ele opera na sociedade e o filme, em uma montagem muito interessante, oficializa essa temática apenas em sua ponta final. Conecta todas as outras a partir dele.

No caminho, vamos do sincretismo da capoeira e suas faces enquanto jogo, luta e dança. Um representante dessa arte conta da dupla resistência familiar quando ele avisou que gostaria de ser um dançarino. Os parentes se preocuparam não apenas pelo aspecto social, das dificuldades de ascensão em uma carreira que foge do tradicionalismo. Mas também aplicaram um olhar sexista, mostrando que a intolerância tem seus atravessamentos. Uma delas é a religiosa, de alta carga nas últimas décadas, como é lembrado com o crescimento das igrejas neopentecostais.

Por outro lado, encontramos Clyde Morgan e sua contribuição para as manifestações artísticas ganhando espaço especial. Uma outra forma de estruturar, de criar pontes com o mundo – no que o documentário inclui imagens históricas do Festac, em Lagos, na Nigéria da década de 1970. Aqui há uma bifurcação curiosa sobre as leituras. Se por um lado a conceituação e os registros auxiliam no desenvolvimento de estudos e possibilitam ensinamentos – um expediente necessário enquanto proteção às culturas populares – a Antropologia evita qualquer indução de padrões. Ao mesmo tempo que defini-los é relevante enquanto prevenção às constantes apropriações culturais. Onde esses mundos se encontram? Nos espaços acadêmicos, claro.

E aqui que as ações afirmativas se mostram importantes, mas apenas o início de um processo. Sem recorrer a didatismos e conteudismo, chama a atenção um dos poucos dados levados ao espectador: o de que a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Estado com 80% da população autodeclarada negra, possuía apenas 15% de pretos e pardos em seu curso. Após as políticas de cotas, o número subiu para 70% – porém, seu alteração na base curricular, faculdades que envolvem cultura e arte formam profissionais menos preparados para contribuir. Por sinal, esta fala é extensível a quase todas as cadeiras desta natureza pelo Brasil. Geralmente, as expressões populares ganham um espaço bem menor do que o tradicionalismo das artes cênicas, do audiovisual, dentre outros compartimentos que reproduzem o eurocentrismo.

Por fim, completando o ciclo de diálogos de “Danças Negras” com as outras obras citadas, se destaca a transposição dos movimentos e músicas ligadas aos rituais do candomblé para outros espaços, como o teatro. Uma ação que deve ser feita com um respeito e cuidado, mas que contribui para o rompimento de uma visão ignorante e preconceituosa de parte da sociedade, muito comprometida pela intolerância religiosa – e que atingem diretamente representantes de um povo que precisa se reconhecer, antes de tudo.

Sob tantas óticas, todas elas fundamentais, fica a impressão de que o melhor é, sim, refundar o país. Começar do zero, com estruturas de poder e dinâmicas sociais novas, porque parecemos cada vez mais distante de fazer com que os grandes opressores ouçam – de boa vontade – todos esses chamados.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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